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abril 18, 2007

Coelho de condescendência

Esta nota é do mais gastronomicamente incorrecto, previno! A propósito de isto se relacionar com caça, lembro que quem não tem cão caça com gato. E também que os condimentos, ervas e especiarias, hoje detestados pelos criadores na moda, ainda valem.

Se há coisa de que eu gosto é de lebre ou, na falta, de coelho bravo. Se há coisa que eu deteste é coelho manso. O problema é que a minha mulher gosta muito do bichinho adocicado e não há boa vida de família que não passe por negociações inteligentes e amistosas. A receita que se segue é a que ela ainda ontem fez, combinada comigo. Claro que não tem qualquer requinte, é rústica, não precisa de boa técnica, é só para me permitir comer o bicho, que fica a parecer-se com caça, embora muito distantemente. Por isto, creio que dispensa identificação de grandes truques.
1 coelho, óleo q. b., 4 cs de banha, 1 cebola grande, 1 c. sobremesa de massa de pimentão, 1 c. sobremesa de massa de malagueta. Marinada. 2 dl de vinho tinto, 1 cebola às rodelas, 4 dentes de alho pisados, 1 cenoura às rodelas finas, 80 g de bacon em cubos pequenos, 1 raminho de salsa, 1 folha de louro, tomilho, alecrim (outras vezes salva, outras ainda segurelha), sal grosso, 8 grãos de pimenta preta, 3 cravinhos, 4 grãos de zimbro (quando há, é difícil de obter).
Preparar a marinada e deixar 3 dias o coelho no frigorífico, regando frequentemente com a marinada. Preparar uma pasta com a banha, a massa de pimentão e a malagueta e esfregar bem o detestável bicho (gato é mais altaneiramente selvagem e talvez mais saboroso, hei-de experimentar quando morrer o meu Peúgas). Untar uma assadeira com óleo, colocar o coelho e acrescentar a cebola, cortada aos oitavos, bem espalhada à volta do coelho. Levar ao forno pré-aquecido, a 210º, até as gorduras estarem todas derretidas e o coelho começar a alourar (cerca de 15 minutos). Ferver a marinada a reduzir um pouco, numa caneca de fundo pequeno (as reduções devem fazer-se sempre em pequena superfície, para não secar demais), coar e juntar ao assado, baixando o forno para 190º. Misturar com frequência o molho e regar o coelho. Ir acrescentando, se necessário, golos de água, misturando com o molho, para ele não ficar só gordura.

Na época da batatinha nova, assar juntamente batatas muito pequenas, com casca. Fora de época, usar batatas aos gomos, segundo o comprimento, como para as batatas assadas à padeiro.

Por precaução, para não me acusarem de falta de imaginação, fui aos meus variados livros ver se não haveria coisa igual. Igual não, mas descobri na "Cozinha Tradicional Portuguesa", de Maria de Lourdes Modesto, uma coisa com alguma parecença (destaco o uso de alecrim, coisa invulgar entre nós), o coelho transmontano à moda de Ranhados. Já escrevi que, na cozinha, "nada se cria, nada se perde, tudo se transforma", à Lavoisier.

Nota - as especiarias estão hoje na mó de baixo, mas foram essenciais e penetraram o nosso gosto gastronómico, por séculos. Porquê a forte condimentação da cozinha indiana? Apenas porque o sal era precioso, de custo elevadom e monopólio colonial (lembrem-se da célebre marcha de Gandhi). Porquê o seu uso por toda a Europa, para riqueza do nosso D. Manuel, o rei da pimenta? Para disfarçarem o inevitável semi-apodrecimento dos alimentos. Porquê ainda o seu uso largo nas cozinhas açorianas? Por uma coisa chamada a volta do largo, das naus da carreira das Índias.

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