" />

março 30, 2007

O tamboril e as leis da economia

Felizmente, vejo com frequência na "gastroblogosfera" um cuidado mínimo obrigatório, o de se valorizar muito mais a qualidade dos ingredientes do que a "graça" da receita. também ajustar uma coisa à outra. Quanto a esta regra essencial relembro o que uma vez aqui escrevi. Não faço uma perdiz à convento de Alcântara, gastando foie gras genuíno e trufas pretas, com perdiz de aviário. Mas o que é a qualidade? Preço?

Meio a brincar, vou pensar na cozinha como exemplo de uma lei básica da economia, lembrando-me de uma coisa execrável mas tão na moda, o tamboril. É o melhor exemplo da velha lei do valor, da procura e da oferta. No meu tempo de jovem cozinheiro pelintra, era peixe muito barato, a nível de carapau. O problema é que havia tantos pelintras como eu à sua procura, até para fazer umas marisquices com colorau e outros temperos, que excedeu a oferta e o horroroso bicho passou a ficar coisa cara. Tem ao menos uma coisa que lhe vale, uma boa quantidade de fígados, embora a léguas de sabor de um fígado de salmonete ou de rocaz (o supra-sumo do fígado amariscado). Pagar balúrdios hoje por uma porcaria de arroz de tamboril é bom sinal da nossa estupidez colectiva. E até gosto de um arroz de peixe, mas de cherne, de bacalhau fresco, de espadarte, de cação, de cavala, de mero, de outros mais, todos peixes rijos mas com muito sabor, a sobressair no arroz de peixe.

Isto dá-me ocasião para uma brincadeira. Não brilho na net como grande cozinheiro criativo, nem quero, só me traria prejuízos práticos. Primeiro, porque não sou. Segundo, porque quando me sai criação é para ser bem gerida. Este caso é diferente. Não quero tamboril para nada, mas diverte-me fazer dessa porcaria "cozinha criativa". Fica para a próxima.

março 28, 2007

Peixes dos Açores

Qualquer continental que vá aos Açores, se procurar bem e até sem ir ao mercado, só nas ementas de restaurantes, defronta-se com peixes desconhecidos. Encontrei na net uma página útil, com a lista dos principais peixes açorianos, seus nomes científicos e tradução em inglês.

Dela extraio alguns casos mais notáveis, de peixes que não encontro cá, ou só muito excepcionalmente: anchova, bagre, bicuda, boca negra, cântaro, cantarino, bodião, boga, bonito, encharéu, gata, lixa, lírio, mero, moreia, peixe rei, rocaz, serra, veja.

Ficam particularmente bem para assar a anchova, a bicuda, o bodião (quando grande), o bonito, o cântaro (que também pode ser cozido) e a serra. Destaco três. A anchova tem um sabor excelente, marcado. Não é por acaso que dá depois os excelentes filetes de conserva. A bicuda é vagamente familiar para quem andou por África e comeu barracuda. Simplesmente, em lugar da enorme barracuda africana, seca e pouco saborosa, a pequena bicuda é excelente para assar ou rechear. Pelo contrario, a serra é variante muito maior de peixe cá bem conhecido, a cavala. É o peixe preferido do meu povo, para rechear. Peixe recheado, prato genuinamente popular nos Açores, merece crónica um dia destes.

Fritos ou grelhados, boca negra, bodião, cantarino, moreia, peixe rei. Hoje prestam-se também para variados pratos modernos de lombos. Destaque especial, para fritar, à moreia. Indescritível, de gosto, macieza. Também honras ao peixe rei. Para quem, como eu, é apaixonado pelo salmonete, o peixinho rei é uma muito razoável aproximação barata para o dia-a-dia.

Casos especiais são o mero e o rocaz. Conjugam a firmeza da carne com grande finura de sabor. Estão mesmo a calhar para todas as preparações modernas de peixe (lombos, rolos, medalhões, etc.), em alternativa ao cherne. O rocaz tem ainda outra característica. A par do salmonete, ou até melhor, é o peixe com o fígado mais saboroso que conheço, com um toque amariscado. Dos peixes de que tenho estado a falar é um que já consegui comer no continente, depois de muita procura. Já agora, atenção a coisa maçadora do rocaz, o do perigo ao arranjá-lo, com todas as suas agulhas que, se picado o cozinheiro, podem dar uma boa infecção local.

Finalmente, o chicharro (carapau, no continente). Não há cá. Tolice, vão responder-me. É que nos Açores é o carapau negrão ou do alto (Trachurus picturatus), enquanto que o continental é o carapau branco (Trachurus trachurus). Vão lá experimentar e ver como são diferentes. Também ninguém confunde cavalo (Equus caballus) e burro (Equus asinus), pois não?

março 26, 2007

Loja de queijos

Infelizmente, não é no continente e acessível ao meu dia-a-dia. Loja de queijos foi coisa a que me habituei, há 35 anos, como o tempo passa, quando vivi na Suíça. Aliás, nem lá ia muitas vezes, porque, em regra, encomendava o que queria de preciosidades ao meu fornecedor diário, ao domicílio, de pão, leite, lacticínios, charcutarias, batatas para o rösti, "gourmandices". Não há ninguém que se lembre de um negócio destes entre nós?

Não é uma loja de queijos à panorama mundial, só açorianos. Mesmo assim, são dezenas de variedades de queijos açorianos. E não é loja de gente apressada e de coisas embaladas. Os queijos estão à vista, com a faquinha para a lasca de prova e o fornecedor, um homem relativamente jovem, só não parece o grande entendido que é porque se sobrepõe a imagem de uma grande simpatia, e conversa a correr, à açoriana, "se bem me lembro!".

Muito injustamente, não posso identificar esta personagem típica, muito menos indicar o nome da loja. Mas não há que enganar. Subir até ao mercado, pela R. de S. João, passar o Teatro e a Escola Roberto Ivens e apurar o nariz, porque logo à esquina do Mercado, no lado exterior, cheira a queijo.

Vou começar pelos menos conhecidos. Corvo, confesso que só o provei há pouco tempo. Pico, desconhecido entre nós, é um queijo de vaca curado mas mole, talvez não mais do que 2 semanas de cura, pequeno (cerca de 20x3 cm), com muitos "olhos", entre o suave e o ligeiramente azedo. Mas também há o S. João, uma variante. Só provando e testando a vossa capacidade de distinguir queijos, que isto não é para quem engole Camembert de leite pasteurizado como se fosse de leite fresco, ou, pior, confunde Camembert com Brie.

Depois, uma variedade de queijos modernos, de pasta semi-mole, muito bem conseguidos. São quase todos experiências micaelenses recentes. Infelizmente, falha-me a memória para lembrar os nomes. São campeonatos diferentes, os queijos de pasta mole e de pasta dura. No primeiro, estes novos queijos açorianos (a meu ver um pouco condescendentes demais com a suavidade) rivalizam bem com qualquer queijo da tradição continental do queijo de ovelha.

Só tenho pena que não se possa fazer nos Açores cabra curado, como se fazia, em fresco, o tradicional "queijo de cobra". A lembrar-me deste, imagino o que seria de sabor silvestre de ervas e arbustos de um cabra micaelense, mas a brucelose não perdoa.

E, antes de passar à primeira liga, outros casos dignos de notícia. O cheddar tradicional de S. Miguel. E o "flamengo" Terra Nostra, para mim sem rival mesmo que limiano (que até é muito aceitável). Podiam fazer-se outros, que a moderna tecnologia consegue reproduzir perfeitamente, com as colecções de fungos disponíveis, e com a qualidade do leite açoriano, Camembert, Roquefort, Gorgonzolla.

Claro que não faltam, com grandes honras, os mais variados S. Jorge e também o queijo velho de S. Miguel. Já aqui falei de um e de outro. Por agora, refiro com grande destaque o último queijo que me trouxeram dessa loja, um S. Jorge Rosais de sete meses (!) de cura, mas ainda bem untuoso, com aspecto de estar a lascar mas afinal mole quanto baste, a desfazer-se na boca. Uma preciosidade. Ofuscava por completo um Topo que também recebi, apesar de este também ter provado bastante bom.

Para terminar, outra variante do S. Jorge, o Lourais. Só falo nele porque é o S. Jorge "oficial" do Carrefour. Cada um compra o que quer. Um Lourais de 4 meses até pode ter muito bom sabor, mas que se estraga pela sensação de se estar a comer uma espécie de borracha.

P. S. (17:23) - Acabam de me informar que a loja se chama "O rei dos queijos".

março 23, 2007

Bifes de atum

Por coincidência, depois da minha última entrada, o meu almoço de ontem foi de bifes de atum, de bonito peixe, boas postas, bem firmes e vermelhas. Creio que merece nota porque, por curiosidade, fui ler os canhenhos e vejo muita variedade na confecção de coisa tão básica.

Olleboma, na "Culinária Portuguesa", indica apenas uma receita, à algarvia, quase como se fossem bifes de carne (e também há quem os faça assim tão simples nos Açores). Maria de Lourdes Modesto, diversifica, com receitas algarvias e madeirenses, mas, curiosamente, não açorianas. Na maioria dos casos, são variantes de ceboladas, muito simples, com excepção do atum assado, madeirense. É estranho que Augusto Gomes, na sua rica compilação de "Cozinha Tradicional da Ilha de S. Miguel", não refira uma única receita de atum fresco (excepto o seu primo, o bonito assado).

Cá em casa faz-se como sempre o comi em casa dos meus pais. Descrevo de forma rudimentar, por não merecer grandes cuidados. Alouram-se bem os bifes, de um lado e outro, em óleo (hoje uso azeite), tempera-se de ambos os lados com sal e pimenta e junta-se cebola às meia luas finas, alho pisado e picado às lâminas, até bem alourado. Acrescenta-se tomate sem pele nem pevides, cortado aos pedaços pequenos, 1 folha de louro, 1/2 colher de café de colorau (ou o equivalente de massa de pimentão), 1 c. chá de massa de malagueta, um pouco mais de sal e de pimenta, 1 raminho de salsa, 1 ponta de açaflor. Ao fim de uns minutos, rega-se com vinho branco, baixa-se o lume e tapa-se a frigideira, até molho bem apurado. Serve-se com batatas cozidas.

Outra forma tradicional micaelense, de que gosto muito, é a dos bifes de albacora com molho de vilão. Vêm no meu livro...

março 21, 2007

Atum dos Açores


Não gosto de me prestar a publicidade gratuita, mas não há regra sem excepção. Sempre me habituei, em criança e jovem nos Açores, ao excelente atum de conserva da Corretora. Desapareceu há muito e a velha fábrica ainda está de pé, em S. Roque, mas como monumento à decrepitude. Entretanto, várias fábricas continentais passaram a usar atum açoriano, mas sem o identificar. Vejo agora uma notícia sobre a nova rotulagem do atum Bom Petisco (lembram-se, "Ó Maria, tens cá disto? Quero atum Bom Petisco") e, para minha surpresa, o destaque à origem açoriana.

Neste caso, nem se trata apenas de coisas mais ou menos subtis, como temperatura do mar, alimentação do atum, etc. É que são mesmo espécies diferentes. O atum açoriano (e também o madeirense), popularmente sempre chamado de albacora, é o Thunnus obesus, muito valioso pela procura japonesa para o "sashimi". É diferente do Thunnus thynnus, o rabil algarvio e mediterrânico. A coisa até é mais complicada, por haver ainda um outro atum açoriano, de pequena dimensão, o bonito (Katsuwonus pelamis), que, ao que julgo saber, só se consome fresco e não é utilizado para conservas.

A partir de agora, cá em casa, volta a ser "Ó Maria, tens cá disto?".

março 19, 2007

José Quitério

Leio sempre com muito agrado as críticas de José Quitério, no Expresso. É um gastrónomo de saber reputado, com bom gosto e bom senso e que cobre uma vasta gama de restaurantes, para todos os gostos e bolsas. A última visita foi à Colina, nas avenidas novas de Lisboa, onde já não vou há bem mais de trinta anos.

É um exemplo de como, frequentemente, somos injustos e volúveis em relação a algumas amizades. Era então um dos meus restaurantes favoritos, que fui esquecendo por outros valores mais altos se alevantarem. Lá voltarei, por verificar, segundo JQ, que continua a ser o mesmo bom restaurante de cozinha tradicional portuguesa. Que bem que ela sabe! Por mais que aprecie os bons restaurantes de alta cozinha que, felizmente, já vamos tendo em número razoável, ainda há lugar para o Poleiro, o Galito, o Polícia, o Pereira, a Colina e tantos outros, sem esquecer algumas excelentes tascas.

Nota – JQ faz uma critica ao restaurante, a falta de baço raspado a engrossar o molho das iscas de fígado de porco (baço de vaca, esse está proibido). Tem razão. Sempre fui habituado a isto, inclusive num outro prato regional micaelense, os torresmos de molho de fígado. Não sei é se JQ está a ser justo. Não me lembro de, desde há anos para cá, ter conseguido comprar baço. No entanto, é claro que um restaurante tem obrigação de ir conseguir produtos que o amador não consegue.

março 17, 2007

Biblioteca básica


Já há tempos que não escrevia sobre livros, o que atrasou a expressão do meu carinho muito especial por este, "O Livro de Mestre João Ribeiro", uma compilação de José Labaredas e de José Quitério (Assírio e Alvim, 1996, ISBN 972-37-0406-4). É um livro fascinante, que começa pela biografia do mestre e que se prolonga pela listagem das suas melhores receitas, sem esquecer a evocação de Maria de Lourdes Modesto, a transbordar de ternura.

Não há decerto gastrónomo que se preze que não saiba que João Ribeiro, o mestre, chefe de cozinha do Hotel Aviz, foi certamente o melhor cozinheiro português da época clássica, quase até ao fim do século XX. Talvez desconheçam é uma história reproduzida no livro e que eu, gulbenkiano, sempre ouvi contar. A ele se deve, em parte, a existência da Fundação Gulbenkian. O milionário impôs três condições para aceitar o convite de Marcello Mathias, embaixador em Vichy, para se instalar em Portugal: um grande advogado, um grande médico, um grande cozinheiro. Teve-os: Azeredo Perdigão, Fernando da Fonseca, João Ribeiro. Qual deles mais importante do que o outro?

O livro está cheio de coisas deliciosas. Cito só duas, espertezas de camponês beirão, que ele era, mas que, dando-me a mim muito gozo, horrorizarão muitos puristas. Um dia, foi contratado para um almoço de perus, no Alentejo. Era verão muito quente, a viagem longa e, ao chegar, notou um ligeiro aroma desagradável nos bichos. Mas há lá bom chefe que não se desenrasque. Pediu em segredo um bom perfume parisiense da dona da casa, borrifou os perus e foi um sucesso. Deve é ter sido com a maior técnica de uso de perfume!

Outra, célebre, foi o banquete oficial à rainha Isabel II. O forreta do Salazar apertou os cordões à bolsa mas mestre João Ribeiro, apesar do seu rigor culinário, aceitou que quem não tem cão caça com gato e parece que fez grande sucesso com uma galinha à convento de Alcântara!

Muito mais importante, no livro, são as receitas. Surpreendem, pela sua variedade, pela originalidade de algumas das fontes, até por alguns pormenores pouco frequentes na cozinha clássica de hotel, desse tempo. Também a constatação de que ele sabia bem o que era dar um toque genuinamente português a alta cozinha, coisa que muitos só agora parecem ter descoberto. Recomendo duas receitas, emblemáticas, o "bacalhau à Conde da Guarda" e a sua versão pessoal, premiada, de "tripas à moda de Caen" (quem diria, tripas num hotel de luxo!)

março 16, 2007

Alcatra? (II)

Volto à alcatra "aldrabada", mas entre aspas, como vêem, porque não sou um fanático dos costumes. Neste caso, é o acompanhamento. Qualquer restaurante açoriano, lá e cá (cá só um a merecer o título!) serve a alcatra acompanhada com arroz ou com batatas. A minha avó torce-se no túmulo. Alcatra come-se sem mais nada, só com pão a embeber no molho.

Isto é uma característica açoriana que me atrevo a considerar única na cozinha tradicional portuguesa. Comer só o prato principal, sem acompanhamentos, abrange coisas tão diferentes como a alcatra, o polvo, os torresmos de molho de fígado, a linguiça e a morcela fritas, as favas de taberna, até cozinha aristocrática como a minha "galinha de molho de perdiz" (todas estas receitas estão no meu livro "O gosto de bem comer"). É assim que como em casa, mas, quando recebo amigos, respeito o seu hábito tradicional de um acompanhamento. Simplesmente, esmero-me.

Os turistas, nos Açores, exigem acompanhamento e os restaurantes correspondem, mas erradamente. No polvo, como é guisado, juntam batatas também a guisar na mistura, o que enfarinha o excelente molho. Batatas sim, mas à parte, cozidas e ligeiramente alouradas em óleo, com um toque de malagueta. O "molho de fígado" acompanho simplesmente com inhames cozidos, de preferência inhames pequenos, aquilo a que na minha terra se chama minhotos, e, quando tenho, com uns quartos de limão galego confitados em banha (que horror, dirão os puristas de avental...). Linguiça e morcela, com ovo estrelado e batata frita (o ananás é uma parvoíce, de quem transplantou para os Açores a ideia não bem conseguida do espada com banana, dos restaurantes banais madeirenses). As favas, apenas com um montinho de alface ripada, ao lado, sem qualquer tempero, que as favas já têm bastante.

É que, como em tantos pratos da cozinha tradicional, por toda a Europa, principalmente latina, o apuro entre ingrediente e molho não permite mistura de coisas estranhas durante a confecção, principalmente farináceas. É o caso, por exemplo, no continente, de uma chanfana, de uns rojões, de um frango na púcara. Acompanhamentos sim, mas à parte.

E a alcatra? A meu ver, é diferente, devido à subtileza do sabor, que se perde facilmente com um acompanhamento, batata ou arroz, como hoje é vulgar oferecer. De acompanhamento, nada ou quase nada. É verdade que tenho uma proposta de alta cozinha, mas desculpem não a divulgar. Por agora, apenas uma sugestão simples. Cortar fatias de pão rústico, sem côdea, com cerca de 2 cm de espessura. Tostar moderadamente, de preferência no forno só com o grelhador ligado e sem qualquer gordura, quando muito ligeiramente barradas com manteiga. Colocar em cada prato e, ao servir, escolher pedaços do toucinho de fumo da alcatra e pedaços da cebola para cobrir bem a tosta. Ao lado, a carne. Sobre tudo, o molho, a embeber muito bem a tosta e a sobrar.

março 14, 2007

Alcatra?


A alcatra da Terceira entrou na moda, e merecidamente, embora se deva falar, como em toda a cozinha tradicional, numa "alcatra" lugar comum de muitas variantes. Essencialmente, no texto mais curto possível, definiria como um assado de carne muito lento, em alguidar de barro aberto, com vinho, manteiga, cebola, toucinho fumado e temperos, com destaque para a pimenta preta e para a pimenta da Jamaica.

Tudo isto tem variantes, a começar pela escolha das carnes e pela variedade e proporção das especiarias. Importante também é o vinho. A alcatra é prato velhíssimo, de antes da filoxera de oitocentos e fazia-se com os vinhos regionais, principalmente o branco de casta verdelho. Depois, o povo teve de a adaptar ao substituto, o ordinário vinho de cheiro. No entanto, as casas ricas sempre continuaram a fazer alcatra com vinho branco e quem sempre a comeu assim sabe bem o que é a diferença. E, agora, se vivesse nos Açores, só a faria com o Da Resistência, verdelho dos Biscoitos da Casa Brum (o Donatário é para outras cavalarias!).

Numa coisa é que não é possível qualquer variação, no alguidar. Lamento que a fotografia não o reproduza bem, em cor e tostado, porque este é novo, a substituir o meu alguidar velhinho e recentemente defunto. Dir-me-ão, que importância tem esse alguidar? Toda! Primeiro o formato, a abrir para cima (notem que a nossa púcara tradicional é ao contrário), a equilibrar bem as temperaturas, de alto a baixo e, principalmente a permitir o principal truque de um cozinheiro de alcatra, quando e como ir dando voltas à carne e regando com um pouco de água. Sim, só de água, porque vinho é só de início.

Mas, essência da essência, é que o alguidar é obrigatoriamente de barro não vidrado! Começa por ser tratado da primeira vez, com uma incubação demorada de água e temperos. Depois, ao usar, lavado de cada vez mas sem violência de esfrega, vai adquirindo a patina indispensável. Ora aqui é que está a dificuldade. É proibido o uso de barro não vidrado na restauração! Portanto, das duas uma. Ou vos estão a servir no prato uma alcatra aldrabada, ou então o restaurante arrisca-se a uma visita da inspecção. Que eu saiba, há um sítio onde a inspecção condescende, imaginem onde. E olhem que não é só por alcatra que vale a pena ir à Terceira.

março 13, 2007

Crôutes de queijo de S. Jorge

Provavelmente muitos desconhecem esta preciosidade da cozinha do cantão do Vaud (Lausana), na Suíça, em particular da lindíssima povoação de Gruyère, onde passei tão bons dias de fim de semana. Já há muitos anos que não as fazia, resolvi agora aproveitar uma oferta abundante de queijo de S. Jorge. O Rosais de 7 meses ficou para belas ceias, o Topo de 4 meses ameaçava estragar-se, relegado para segunda classe e com ele recriei as crôutes, de cor, porque não encontrei a receita, só a memória dos sabores.

Tosta bem amanteigada e com S. Jorge gratinado "au bonheur des gourmets"
250 g de queijo de S. Jorge, Topo ou Rosais de pelo menos 4 meses de cura, manteiga q. b., 4 fatias grandes de pão rústico, 2 cogumelos de Paris grandes, 2 chalotas (ou, na falta, 1 cebola pequena e 2 dentes de alho), 1 dl de vinho branco seco, 1 c. chá cheia de farinha, 4 ovos, 1 rodela grossa de linguiça, sal, pimenta preta, noz moscada.
Ralar grosso o queijo. Lavar os cogumelos e picá-los, em pedaços de cerca de 5 mm. Alourar no mínimo de manteiga, em lume forte, para não ficar molho aguado. Coar, reservar os cogumelos e guardar também a manteiga. Em mais manteiga, estalar, sem refogar demais, a chalota picada muito fino. Juntar a manteiga à anterior e reservar a chalota. Em mais 2 colheres de manteiga, fritar a linguiça, em rodelas muito finas. Rejeitar a linguiça mas aproveitar a manteiga, a juntar às anteriores.

Untar com mais manteiga o fundo de uma frigideira, voltar a aquecer a chalota picada, polvilhar com a farinha e misturar bem. Molhar aos poucos com o vinho, como se fosse para um aveludado.

Misturar este molho, depois de arrefecido, com o queijo ralado, as gemas bem misturadas e os cogumelos. Temperar com pimenta preta moída e noz moscada ralada, tudo feito na ocasião. Pimenta preta e noz moscadas em pó são coisa inaceitável para qualquer dos meus leitores. Verificar o gosto de sal, conforme o queijo e rectificar o tempero. Neste caso, embora não seja tradicional, recomendo bem que se use flor de sal. Mas pensem porque é que eu digo "neste caso"!

Cortar fatias grossas de pão rústico e untá-las bem com a mistura das manteigas, excepto a última, usada para o aveludado. Colocar no tabuleiro do forno sobre folha de alumínio (não é truque culinário, apenas questão de mais fácil limpeza) e levar durante 5 minutos ao forno preaquecido a 170º. Cobrir com a pasta, aumentar a temperatura para 210º, ligar só o grelhador do forno e deixar gratinar, controlando frequentemente o aspecto.

Nota – o título da receita pode parecer estranho, mas é homenagem ao meu amigo MCR, que escreve regularmente "Au Bonheur des Dames".

Nota 2 – Às vezes, ponho-me na pele de um leitor apressado, que acha que pode fazer isto muito mais à ligeira. Tem toda a razão, também eu o posso fazer e continuar a sair coisa razoável. O segredo está em que é preciso técnica para aligeirar sem perda de qualidade. O meu próximo projecto é um livro de cozinha de uma hora, ao chegar a casa. Julgam que é fácil? Cada receita me está a dar dias de trabalho, para cumprir o requisito sem perda de qualidade.

março 11, 2007

À chefe Silva

Tenho um comentador exigente que respeito muito mas com quem tenho alguma divergência sobre este blogue. Ele é um grande gastrónomo, bom crítico, porque também cozinheiro cuidadoso e senhor de boa técnica. Reconhecendo ele que partilhamos estas características, acha que pode haver alguma "descida de nível" minha ao escrever o que aqui costumo escrever. Tem razão no aspecto de que épraticamente impossível transmitir num blogue, a um público muito diversificado, toda uma experiência pesoal.

Não concordo com o meu amigo é quando ele me diz que corro o risco de aparecer aos mais exigentes como "isto é à chefe Silva". Aproveito para dizer que tenho o maior respeito pelo chefe Silva. Não é uma autoridade em técnica moderna de cozinha, não é "criativo", mas quanta gente tem feito o que ele tem feito pela alfabetização gastronómica dos portugueses? E é disto que se trata, de alfabetização, não de erudição elitista.

março 09, 2007

Voltando à técnica

A minha entrada sobre a técnica do guisado mereceu um comentário de luiz vaz, "precioso detalhe o do alho antes da cebola. Vou assumir como absolutamente mandatório nos futuros esturgidos." (esturgidos, estou a ver que tenho leitores do Norte). Mas, com isto, uma resposta minha que fiquei a pensar que merecia destaque, como entrada individualizada.

luiz vaz (de camões...), a cozinha é como uma arte ou uma ciência: 5% de génio, 15% de imaginação, 80% de suor. Suor quer dizer treino, treino, treino, fazer e desfazer, sentido crítico sobre o que vamos inventando, aprendizagem da boa técnica, descoberta de pequenos truques essenciais. Sei do que falo, nada disto é muito diferente da criação científica, minha vida de trinta anos. E também não muito diferente dos infindos desenhos de Picasso antes de pintar a Guernica.

Quando leio alguma coisa a dizer que alguém imaginou coisa magnífica, muito criativa, de cozinha de autor, que lhe saíu logo perfeita, diz-me a minha experiência que é de desconfiar. A mim, só depois de alguns ensaios falhados, jantares dia após dia com o meu irmão grilo falante gastronómico, com correcções sucessivas, passo a passo, temperatura a temperatura, tempero a tempero, é que me sai bem. E já li muitas confissões de grandes autores a dizerem que trabalharam longamente uma ideia antes de a porem na ementa do seu restaurante. Entre nós, há inspirados que inventam logo à primeira coisa perfeita.

E já repararam que as receitas que os autores publicam nas revistas não são as que aparecem nas ementas dos seus restaurantes de luxo? Muitas vezes, são produtos de segunda, embora suficientemente imaginados para dar ideia das qualidades do autor.

março 07, 2007

Quando a mostarda me sobe ao nariz...

Já tenho idade para ser moderado e sensato, mas há coisas que me fazem vir a mostarda ao nariz. Começo a ter dificuldade em ler coisas que se vão escrevendo por aí, de pessoas que criam coisas imemoriais de rajada, à primeira, com iluminação de um raio celeste. Não haveria mal nenhum nisso, se não fosse ser enganador para a maioria dos leitores.

Para estes leitores bem intencionados, volto a dizer: vão por mim, bom gosto e bom senso. Eu não quero entrar em guerra com alguma coisa de pernóstico que por aqui se vai escrevendo. Com isto, quase que pareço cozinheiro primário.

Não é por usar fatinho às riscas que Paulo Portas alguma vez será um gentleman. Não é por um qualquer apregoar que faz cozinha de autor que alguma vez será um grande cozinheiro, mesmo que me critique por eu ser um clássico atrasado, do tempo da guarnição e molho, que gosta de natas, que venera Escoffier, enfim, um não "criativo". Há coisas que me ficam atravessadas, "quem não se sente não é filho de boa gente".

Confusão entre ervas

A entrada anterior fez-me lembrar de que não resisto a uma professorice. Há grande confusão entre duas ervas completamente diferentes, por causa do nome, manjerona e manjericão. O manjericão, a que os ingleses chamam basil, tem uma folha relativamente grande e é a erva indispensável em muitos e muitos pratos da cozinha mediterrânica, a começar por muitos molhos para massas italianas, acabando nas mussacas gregas. Não só, a sua origem é asiática e, pelo que tenho lido, é erva muito usado na cozinha tailandesa e vietnamita. Nota importante, é que o manjericão resiste muito mal à fervura. Na boa cozinha italiana, é adicionado só no fim da confecção de um prato.

Coisa diferente é a manjerona (marjoram em inglês), de aspecto semelhante ao orégão, de folha pequena e em raminhos muito compactos. Aliás, é fácil fazer híbridos das duas plantas. Também é predominantemente um ingrediente de cozinha mediterrânica mas de outra, a provençal.

Tomate com mozzarella e manjerona, já vi numa ementa. Asneira! Embora também não fosse mau.

Cozinha de autor

Já aqui tenho manifestado reservas sobre a escrita amadora ao estilo de "cozinha de autor". Isto vale também para mim, porque, se a faço, é com um rigor de experiência técnica que não é compatível com a escrita de blogue, e, por isto, avisei logo no cabeçalho que não publicaria receitas. Vale também para a publicação nos jornais de receitas de chefes conceituados.

Começa porque nunca vi publicada uma receita que depois vá encontrar na ementa do respectivo restaurante. Pudera, negócio é negócio. Depois porque, em muitos casos, a grande cozinha de autor não é coisa de amador, começa logo por exigir equipamento que o amador não possui. Uma receita de Bertílio Gomes, no Expresso de 24.2.2007, é um bom exemplo (à margem, não é receita que me atraia).
Camarão tigre em crosta de batata com frutas e azeite de baunilha

8 camarões tigre grandes; 4 batatas grandes agrião; 1 ramo de manjericão; 1 di de azeite virgem extra; 1 vagem de baunilha; 1 limão; 100 g manga; 100 g papaia; 100 g de abacate; 100 g de abacaxi; óleo de girassol; ervas aromáticas (cerefólio, manjericão e cebolinho).

Descascar os camarões tigre, deixando só o rabo. Tirar a tripa e temperar de sal, pimenta e manjericão. Cortar a batata em tiras finas e compridas. Com a ajuda de um laminador chinês, enrolar os camarões com a batata e fritar em óleo quente. Escorrer e colocar sobre um papel absorvente. Cortar bolas das frutas com a ajuda de uma colher parisiense. Cortar a vagem de baunilha ao meio, retirar as sementes e juntar ao azeite. Amornar o azeite até aos 50°. Deixar em infusão pelo menos uma hora. Depois, juntar o sumo de limão e mexer bem para que fique emulcionado. Empratar dois camarões por pessoa, com as bolas de frutas. Regar com azeite de baunilha e as ervas aromáticas.
Batata agrião, sabem o que é? Confesso humildemente que eu não. Conheço as variedades oficiais portuguesas, Agria, Crosty, Hermes e o seu bom uso, assim como, de nome, algumas variedades estrangeiras: Apolo, Fontenay, Hollande, Roseval, Intje, etc., mas nunca as usei e nem me arrisco ao snobismo de as indicar numa minha receita. Agora batata agrião é que é coisa que desconhecia, confesso.

Notem as ervas: cerefólio, manjericão e cebolinho. Elementares, uso-as muito, mas porque as tenho no canto de horta do meu jardim, juntamente com salva, hortelã, estragão, tomilho, alecrim, manjerona, poejo e, obviamente, salsa e coentros. Dispenso os orégãos porque acho que temperam bem mesmo secos, como os compro. Conseguem arranjá-las facilmente, frescas, no supermercado? Ou mesmo na praça?

Laminador chinês? Será o passador chinês? Colher parisiense? Sabem o que é? E até o banal termómetro, quem é que o usa e, mais importante, sabe usar?

Mais uma vez, em conclusão, e lembrando o princípio de Peter: há tão boa cozinha tecnicamente acessível mas de grande qualidade e bom gosto gastronómico a ser feita por um amador exigente! O meu conselho é que se esmerem nela, deixando a "grande criação" a quem tem génio criador e, principalmente, enorme domínio técnico e tempo para muita investigação, muita asneira atrás de asneira, até sair a obra prima. Essa da cozinha de autor que sai logo bem à primeira, a merecer divulgação imediata, dá-me vontade de rir. A mim, se me sai bem à terceira vez, e depois de muitas críticas e sugestões de amigos sabedores minhas cobaias de prova, já fico satisfeito.

março 05, 2007

Criatividade e simplicidade


Santi Santamaria (três estrelas no seu Can Fabes) é dos meus escritores de gastronomia e culinária preferidos. Infelizmente, não posso dizer que seja dos meus cozinheiros preferidos porque nunca lá pude ir. Vou-me contentando com a leitura do seu livro "Palabra de cocinero" (disponível pela Amazon). É um portento de tudo o que aprecio como espírito de autor, mas conciliado com bom senso e bom gosto, simplicidade elegante, grande técnica. Curiosamente – ou talvez não – tudo isto também transparece no seu estilo de escrita.

Não esperem vê-lo aconselhar costeletas de borrego com esparregado de funcho escaldado em chá verde e com coulis de mirtilo amentolado. Vejam antes uma receita sua que vem no Público de 3.3.2007, recolhida por David Lopes Ramos. Reparem mesmo que está, em termos de confecção, ao alcance de qualquer amador minimamente treinado. Claro que a vou fazer, um dia destes. Talvez substitua é os berbigões por boas amêijoas pretas, mas ainda não sei. Se Santamaria diz berbigões, alguma razão terá. Ou então, para tentar perceber isto, talvez faça ambas as receitas em paralelo. Já aqui escrevi que a aprendizagem da alta cozinha passa por muito suor.
Berbigões com ovas de bacalhau

Ingredientes: berbigões dos maiores, alho francês, nata montada, ovas de bacalhau defumadas, azeite de cebolinho, sal e pimenta.

Abrem-se os berbigões a vapor e retiram-se das cascas. Misturam-se as natas com as ovas, ou com moxama de atum pulverizada. Corta-se em juliana a parte branca do alho francês e branqueia-se em água a ferver. Deixa-se arrefecer e tempera-se com o azeite de cebolinho, sal e pimenta. Num prato fundo, coloca-se a juliana, depois os berbigões e, a encimar, uma quenelle (formata-se com duas colheres de sopa, como os pastéis de bacalhau) de nata com ovas. Para o azeite de cebolinho, é necessário esmagá-lo e juntar o azeite.
Já agora, mas para se dar o devido desconto à metáfora, o que Santamaria escreve na contracapa. "Para dorar una cebolla o servir y degustar unos macarrrones hace falta filosofia".

março 04, 2007

Ainda o polvo

Continuando a falar de polvo, duas notas técnicas. Em primeiro lugar, o amolecimento. Nos Açores, onde o polvo guisado com vinho de cheiro é um ícone da cozinha tradicional, o tratamento habitual é à bruta, braçal, muita pancada com o rolo da massa. Por preguiça, comecei a usar outro, não sei já se invenção se coisa lida. Estendê-lo de véspera na corda da roupa, o manto preso por molas. Garanto que funciona, estica até ao chão, que a lei da gravidade ainda vale, aplicada à água do polvo.

Depois, lembrei-me de uma técnica mais científica, que tanto usei no laboratório para quebrar fibras de tecidos, a preparar culturas celulares. Simplesmente congelar e descongelar a seguir. Esta é mesmo invenção minha. A congelação deve ser rápida, regulando o congelador para funcionamento contínuo. Também a descongelação deve ser rápida, mas a temperatura muito bem controlada, em água morna corrente, à temperatura de dar banho ao bebé. Estão a ver que isto de cozinha também tem a ver um pouco com a ciência?...

Outra coisa importante a não esquecer quando se cozinha polvo é que há um ponto certo. É uma excepção em relação à maioria dos alimentos que, quanto mais cozidos, mais se amolecem e se desfazem. O polvo não. A partir de certa altura, perdida a água entre as fibras, elas ressecam e o polvo vai ficando cada vez mais duro e emborrachado. Não posso indicar um tempo certo, porque depende do fogão, do tipo de gás e da altura do lume, mas diria que tenham cuidado a partir dos 30-40 minutos de fervura. Vão controlando.

março 03, 2007

Salada de polvo, uma provocação

Continuando na provocação, em relação aos puristas, e na defesa do bom senso, em que a vulgaridade é aceitável se "diferente", aqui vai uma história "gastronomicamente indecente".

Cá em casa, é a minha mulher que se encarrega da comida simples (?!) do dia-a-dia, durante a semana, mas partilhando comigo o equilíbrio entre o sentido prático e um mínimo de exigência. Vou dar o exemplo do almoço de há dois dias, que ela teve de fazer muito à pressa. Foi ao pequeno super-mercado da vizinhança, e o que lá encontrou a desafiar-lhe a imaginação e a pensar no que tinha no frigorífico, de véspera, foram umas latas de polvo de conserva. Coisa horrorosa, dirão os sábios da escritura.

O que ela tinha guardado no frigorífico, de véspera, para acompanhamento afinal não utilizado de carapaus com molho de vilão, eram batatas cozidas, com casca, à minha maneira açoriana, talhadas com um golpe quase a dividi-las, barradas em ambas as faces interiores com um pouco de massa de malagueta e cozidas com uma folha de louro, dois dentes de alho esmagados e sal grosso (admito que seja um crime, mas não uso flor de sal para isto...). Fez coisa elementar de boa técnica, pôr tudo em condições finais: as batatas até à temperatura ambiente, o polvo bem demolhado em água corrente, para tirar o gosto do óleo vulgar. Foi tratar da vida e, ao chegar à hora do almoço, preparou a salada.

Tudo a frio, picou muito fino uma cebola, um dente de alho e um raminho de salsa (incluindo talos, boa técnica!), misturou com as batatas, acrescentou o polvo de conserva, e, finalmente, embebeu na vinagreta: azeite extra-virgem e vinagre de vinho tinto (2/3 e 1/3, nossa regra) fortemente batidos com um garfo (nunca com a varinha!) mais uma c. café de malagueta, outro tanto de massa de pimentão, sal e pimenta, uma boa ponta de açaflor (atenção, não estou a falar do açafrão amarelo!), 3 grãos de Jamaica bem esmagados, aproveitando só os pedacinhos da casca, onde está todo o sabor, mas não o pó interior, que é só picante (!), mais uma colher de sopa de alcaparras bem lavadas.

É claro que isto é história de quinta feira ao almoço. Seria inaceitável hoje, sábado, ao jantar. Mas isto lembra-me uma coisa: o que é que eu encontraria na mesa familiar de um grande chefe num almoço apressado de quinta feira?

Nota – Como disse, a minha norma de azeite-vinagre é de 2/3-1/3, mas aceito bem, conforme os gostos, desde 3/5-2/5 a 3/4-1/4. E isto é para a vinagreta. Já para temperar um clássico peixe cozido ou um bacalhau, uso muito menos vinagre, em relação ao azeite.

P. S. – Repararam (notem os itálicos) em que, mesmo em coisa tão simples, é possível ter truques de boa técnica? Por exemplo, que ao esmagar a pimenta da Jamaica se rejeitam os pedaços da casca externa? Ou que a salsa picada deve incluir um pouco de talo? Ou que uma vinagreta não quer varinha?

março 02, 2007

Inimaginável

Tive hoje um almoço memorável, do meu "bando dos 4". Não foi em nenhum restaurante de luxo (preço médio de 20 euros, sem vinho), mas também não é tasca sem qualquer obrigação. É concessionário de um dos mais agradáveis espaços verdes de Lisboa, na zona do Restelo. A cozinha é vulgar mas o que merece descrição é o serviço. O couvert, nem sim nem sopas. Pão de qualidade honesta, uma pasta de caranguejo razoável, azeitonas verdes bem temperadas, mas tudo com manteiga de pacotinho e com um queijo curado de ovelha que vinha inteiro e sem uma faca adequada para o cortar. Veio o empregado, jovem e simpático, receber a encomenda (a partir de uma lista não entusiasmante, mas aparentemente honesta) e aí é que começou o descalabro.

Só uma pessoa é que quis sopa, mas veio tudo ao mesmo tempo, a sopa para ela e o prato para os outros. Entre amigos, ela insistiu em que fôssemos comendo. E tudo trocado, ou porque o jovem se esqueceu ou porque o cozinheiro não ligou. Um bife à portuguesa pedido sem ovo, com batatas pouco fritas e com um pouco de legumes veio com o ovo, sem os legumes e com as batatas às rodelas, como é da praxe, mas muito fritas porque cortadas muito finas. Uns lombos de porco grelhados pedidos só com arroz vieram com batata frita e com salada. Um molho de mostarda para bife pedido não muito espesso vinha grosso que nem béchamel com mostarda de má qualidade.

O mais surrealista é que, perante os protestos, acorreu a dona que, ao menos, reparou em que faltava o saleiro e o pimenteiro. A desgraça foi que se atabalhoou e derramou o pimenteiro no tal ovo a mais!

No fim, pedido de sobremesas. Vieram quando os pratos ainda não tinham sido levantados! Pior ainda, o rapaz, que já devia estar perdido de todo, ainda foi fazer qualquer coisa à cozinha e por isto amontoou no centro da mesa os pratos sujos. E não é que, depois de se chamar a atenção para tal alarvidade, o mesmo se passou outra vez em relação aos cafés e aos pratos de sobremesa!

Que eu sou brincalhão por natureza e que até era capaz de inventar esta história, sabem os meus bons amigos. Mas palavrinha de honra que isto é tudo verdade e se passou hoje, nesta nossa Lisboa, em 2007!

março 01, 2007

Refogado, coisa banal, mas com boa técnica

Neste blogue, vou tentar dar bom relevo à técnica, mas ao nível do cozinheiro comum, que não tem maneira de cozinhar a vácuo e que não tem um forno a vapor. Hoje vou dar um truque muito simples, mas que creio que fará grande diferença na vossa "boa cozinha".

Vão fazer um qualquer guisado de carne. Seguem a velha regra portuguesa, afinal também de outras cozinhas populares ("daubes", carbonadas, vaca estufada de Castela, etc.). Derretem uma gordura e alouram bem, geralmente demais, cebola e alho picados, com uma folha de louro. A seguir, volteiam bem neste refogado os pedaços de carne e continuam com a receita.

Errado! Nestas condições, a carne destila logo todos os sucos, porque é uma cozedura, quando ela, às vezes até tirada do frigorífico, faz baixar brutalmente a temperatura do cozinhado, além de que a gordura já contém, nessa altuar, água saída da cebola. A boa técnica é ao contrário.

Seja qual for a gordura (hei-de escrever sobre isto), a primeira coisa é levá-la a alta temperatura, embora sem queimar, e saltear bem a carne, mexendo sempre, a estalar muito bem, isto é, a ficar crestada. Retira-se a carne e mantém-se quente (na prática, aquece-se no micro-ondas antes de a voltar a usar). Deixa-se arrefecer ligeiramente a gordura de estalar a carne e então é que se faz o refogado, alourando primeiro o alho pisado e picado e só um pouco depois se juntando a cebola (se for ao mesmo tempo, a cebola abafa o sabor do alho). Só depois, reintroduzida a carne, é que se volta a seguir a receita, juntando o líquido, já quente, e os restantes ingredientes.

P. S. – Reparem no cuidado que tenho com a temperatura. É coisa essencial na boa cozinha, nunca coisa fria deve ser adicionada a coisa a ferver! Tudo sempre à mesma temperatura. Dou o exemplo do meu querido bife à Marrare, de que tanto tenho escrito. Nunca, por nunca, juntar ao molho as natas acabadas de tirar do frigorífico. Experimentem também fazer uma maionese com um ovo tirado do frigorífico. A probabilidade de insucesso é considerável. Ou ainda, juntar gelatina ainda a ferver, a seguir a diluir, a um caldo já arrefecido e vão ver o que acontece.