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janeiro 30, 2007

Alcachofras

Os meus jantares são ligeiros, ou uma sopa basta ou um prato de legumes ou um prato de queijos e enchidos. Há dias, comi coisa comprada em loja muito conceituada, alcachofras salteadas em azeite com picado de alho e presunto. Bem feito, mas a deixar-me alguma insatisfação. Isto suscitou-me uma nota. Legumes há muitos, mas primeiro os príncipes, os que merecem todas as cortesias e todo o respeito pela salvaguarda da sua nobreza. Para mim, por ordem, túberas, alcachofras, espargos, caiotas, endívias. Por isto, alcachofras, só à boa maneira simples. Depois escreverei alguma coisa sobre a forma como trato os restantes, com todas as vénias.

Para quem não está habituado, deixo a sugestão da tal forma simples de comer alcachofras. Cozê-las inteiras, com sal. Ao lado, uma tacinha com bastante molho de manteiga e sumo de limão, um simples toque de pimenta. Comer uma alcachofra tem três fases. A princípio, as folhas verdes e duras. Arrancam-se uma a uma e morde-se e chupa-se só a pequena base tenra, molhada na manteiga-limão. A seguir, as folhas tenras, intriores, todas elas já quase inteiramente brancas. É molhá-las bem e não só morder o tenro, é comer tudo, porque a ponta mais dura nos fica entre os dedos. Em todo o caso, saber até que parte da folha comer é critério de conhecedor.

Finamente o coração ou, como eu sempre chamei, o queijinho. Comidas todas as folhas, aparece aquela coisa feia de pelos. Nem tentem comer, não sabe a nada e deixa uma impressão na boca de termos andado a lamber o gato. É uma camada muito superficial que se retira facilmente com a ponta não aguda de uma faca. A seguir, segurem pelo pé, molhem bem na manteiga com limão, comam até ao pé, seguro entre os dedos e vejam que delicia.

janeiro 28, 2007

O exame para diploma de cozinheiro

Há muitos amadores que se consideram mestres de cozinha porque fazem uns petiscos. Não se lhes pode levar a mal, até porque isto revela, no fundo, o gosto pela cozinha, condição essencial para se progredir para uma razoável cultura gastronómica. Mas, como em qualquer formação, há um limiar mínimo para se passar no exame. Costumo dizer que um cozinheiro passa a "encartado" quando consegue fazer um bom molho holandês (já agora, também um consomê absolutamente cristalino, um suflê bem alto, sonhos a rebentar de fofos).

A receita, se a escrever reduzida aos ingredientes e processo geral, é simplicíssima. Aquecer em lume brando 3 gemas com 3 colheres de sopa de água, sal e pimenta (pessoalmente, prefiro metade branca metade preta), mexendo sempre, até consistência de pomada. Em banho-maria, incorporar aos poucos, batendo bem, cerca de 200 g de manteiga previamente derretida e a que se retirou o depósito esbranquiçado. No fim, sem deixar de bater, juntar uma colher de sopa de sumo de limão. Aparentemente, nada mais simples, mas de quantos molhos holandeses deslaçados ouvi falar!

Vamos por partes. Para 3 pessoas, como cá em casa, usando 3 ovos, uso sempre uma caneca metálica, tradicional. É a que me dá mais confiança para semi-cozer as gemas. Um tacho, mesmo pequeno, espalha demais. Coisa importante, os ovos não devem ter saído imediatamente antes do frigorífico e a água tem de ser de nascente, sem cloro. O que é a consistência de pomada? Ao verter com uma colher, deve cair em gotas muito grossas. Uns segundos a mais ou um pouco de lume a mais são a morte do artista.

Com o hábito, consigo dispensar o banho-maria, mas não aconselho a principiantes. Trabalho na boca mais pequena do fogão e com o lume no mínimo, colocando a caneca de forma a apanhar apenas um pouco da chama. A manteiga deve ser incorporada fora do lume, levando-se depois, de cada vez, a aquecer um pouco, como descrevi, mexendo sempre. Mesmo assim, lá de vez em quando, deslaça (acontece aos melhores). Se lhe acontecer isto, retire do lume, deixe arrefecer um pouco, junte uma ou duas colheres de sopa de água bem gelada, bata muito bem, aqueça e volte a bater com manteiga derretida.

Já agora, conto a minha "estória" do molho holandês. Era eu muito jovem e principiante nas artes da cozinha, veio trabalhar como visitante no meu instituto um professor brasileiro,s. Ficámos muito amigos, apesar de ele ter idade de ser meu pai. Algum tempo depois, encontrámo-nos por acaso em Madrid e ele convidou-me, com a abastança de recursos que tinha, para um almoço no que era considerado à época o melhor restaurante da capital. Lembro-me de que fiquei maravilhado com a ementa e perplexo em relação à escolha entre ofertas tão sublimes. Mas o L. J. estava em dia mau e, fora da ementa, quis simplesmente uma truta genuína "au bleu" com molho holandês. Eu segui o seu alvitre. O que nos veio no prato, portanto uma encomenda especial ao chefe, foi uma coisa sublime. A partir daí, o molho holandês, talvez uma banalidade para alguns dos meus leitores, passou a ser um fetiche da minha cozinha.

Há tempos, a história repetiu-se, agora comigo, com uma excelente posta de peixe espada preto, num bom restaurante do Funchal, porque não me apetecia um molho atropicalado que propunham. Isto é profissionalismo. Só lamento não poder identificar agora o restaurante, mas vou tentar recordar-me do nome.

janeiro 26, 2007

Reinventando a roda

Comia-se bem em casa dos meus pais, mas nem sempre coisas complicadas. Às vezes, por gosto ou pressa, podiam ser coisas bem simples, mas sempre bem feitas. O meu pai gostava muito de atum de conserva, o excelente atum da Corretora. Normalmente em salada russa e maionese. Outras vezes, à pressa, apenas com ovo cozido e batata cozida. Foi também hoje o meu almoço e lembrei-me do meu pai, fazendo o "molho" que ele preparava sempre, já no prato.
Um dente de alho picado fino, misturado com a gema de um ovo cozido e uma boa colher de malagueta. Um toque de boa mostarda. Amolecer em vinagre, aos poucos, intervalando com emulsionar em azeite, também aos poucos. Picar fino a clara cozida e misturar com o molho.
"Et voilà", coisa de que sempre gostei muito. Afinal, era roda reinventada, em total inconsciência disto do meu pai: conhecem o molho gribiche? Não é exactamente igual, mas a ideia é a mesma. Simplesmente, talvez por razões sentimentais, prefiro o molho do meu pai. Sugiro-o também com qualquer peixe cozido, quente ou, de preferência, frio.

janeiro 25, 2007

Ainda o queijo de S. Jorge

Volto a algumas notas breves sobre o queijo de S. Jorge. Há tempos, referi-me principalmente à origem, aconselhando a que, nos supermercados de cá, se dê primazia aos queijos do Topo (mais homogéneo e untuoso) ou de Rosais (um pouco lascado, com pequenos buracos e mais picante). Isto porque, normalmente, já estão embalados e é praticamente impossível pedir o que sempre foi tradicional nos Açores, a lasquinha de prova.

Creio que então me esqueci de outro factor essencial de qualidade, o tempo de cura. Aliás, é o que distingue oficialmente o queijo de S. Jorge, com denominação de origem e confraria, do queijo tipo Ilha. Um S. Jorge tem de ter o mínimo de 45 dias de cura. Claro que não basta este mínimo. Se repararem no rótulo e nas suas letras pequenas, verão que, na prática, os queijos indicam ou menos ou mais do que 90 dias de cura. Só compro os segundos, normalmente com 4 meses.

Também pode haver curas de 6 meses ou mais, mas aí passa-se para outro tipo de queijo, o "queijo velho", hoje muito bem feito em S. Miguel e já à venda cá.

janeiro 23, 2007

Açordas açorianas (2)

Recordar as açordas micaelenses foi também recordar o meu pai, a quem muita vez fiz a sua simples açorda predilecta, a de cebola, coisa que o fazia perder-se em recordações de menino. Melhor do que isto, sua perdição, era quando ele adivinhava que eu lhe ia fazer uns "charrinhos" de molho de vilão, embeberados para o dia seguinte. Não há coisa mais simples do que esta açorda. Também me dizem que se faz em velhas famílias alentejanas tradicionalistas, mas o toque de diferença é o dos temperos micaelenses, bem como a manteiga em vez do azeite.
Para 4 pessoas. 1 pão rústico, 6 cs de manteiga, 4 ovos, 3 cebolas grandes, 1 tomate (facultativo), 1 cabeça de alho, sal e pimenta preta, 1 pitada de malagueta, 1 c. café de açaflor.
Refogar na manteiga a cebola às rodelas finas, o alho esmagado e picado muito grosso e o tomate picado. Acrescentar a água e os temperos e ferver muito brevemente a cebola. Escalfar os ovos. Servir para os pratos com bastante pão aos pedaços.
Mas a malagueta e a açaflor? Se nunca um amigo açoriano vos forneceu isto, usem uma ponta de pimenta da Caiena em vez da malagueta. A açaflor é que é mais complicada, porque o seu legítimo equivalente é o açafrão espanhol, de estames, coisa de milionário que não se justifica esbanjar numa açorda. Quem não tem cão caça com gato, usem o açafrão amarelo em pó, mas muito ligeiramente.

O tomate também merece nota, por eu ter escrito que era facultativo. No tempo de infância do meu pai, tomate não havia todo o ano. A açorda que a minha avó lhe fazia era às vezes com, outras sem. Lembram-se do velho ditado, "em tempo de tomate não há má cozinheira"?

janeiro 21, 2007

Porco preto: um mito?

Já enjoa ler "porco preto", plumas, secretos, lombinhos, nas ementas de restaurantes vulgares, que, ainda por cima, não o sabem confeccionar. Gosto dos enchidos de porco de montado e do presunto "pata negra" (ah, "El Museo del Jamón", Carrera de San Jerónimo, ali à mão direita da Puerta del Sol, com um manchego e um copo de Rioja!). No entanto, não sou grande apreciador da carne do porco preto e, mesmo quanto ao presunto, não o troco por um de Parma.

Além dissso, criou-se a ideia de que porco alentejano é porco preto. Um amigo eborense cuja família sempre criou porco para a matança anual diz-me que sempre foi porco branco, grande e gordo. O porco preto é vendido para fins industriais.

Toda a gente sabe o que é o segredo do porco preto, o ibérico, o pata negra, como dizem os espanhóis. Vida em liberdade, no sistema ecológico do montado, alimentação predominantemente de bolota.

No norte, melhor dito em Trás-os-Montes, melhor dito ainda à volta de Montalegre ou Vinhais, impera o bísaro. Também a alimentação parece ser fundamental para a qualidade dos seus produtos, presunto e enchidos. Dizem os entendidos que essa alimentação se deve basear na castanha.

Para um açoriano, tudo isto é muito estreito, alimentações muito refinadas, porquinhos de elite. até imagino os colectores tradicionais franceses de trufas a permitir aos porcos cheiradores que se alimentem delas. Os enchidos açorianos são reconhecidamente de grande qualidade? E de que é que lá se alimentam tradicionalmente os porcos? Das lavagens, o mais fisiológico possível, porque o porco, como o homem, é omnívoro.

Quando eu era miúdo, havia um sistema de racionalização de desperdícios muito inteligente. Cada casa tinha uma grande lata de lavagens para onde iam todos os restos da cozinha: cascas de legumes, partes feias das batatas, talos grossos das couves, a rama da cebola, o caroço das caiotas, o pão duro, os "nervos" e o sebo da carne, a espinha do peixe, o leite já um pouco azedado, a gordura de fritar que já não se aproveitava, tudo o que ficava nos pratos depois das refeições. Eram as lavagens.

No dia seguinte, de manhãzinha, passava o homem da carroça fedorenta. "Quim tén lavages?" A câmara poupava com a recolha do lixo, as pessoas livravam-se dele, o homem das lavagens fazia o seu pobre negócio, os porcos dos seus clientes alimentavam-se segundo as melhores regras da sua natureza, o ciclo fechava-se com a compra de excelentes enchidos produzidos pelos lavradores abastecidos pelos fornecedores das lavagens. A economia pode ser coisa bem simples.

janeiro 18, 2007

Bacalhau de cura amarela (2)

O meu almoço de hoje, uma bela posta de bacalhau de cura amarela, simplesmente cozido (ou melhor, insisto sempre, escaldado). Cozido ou assado, que está a um preço (30 €/kg) que me impede de o usar misturado com outras coisas. Afinal, é o bacalhau da minha infância, de sabor bem vincado, na melhor tradição portuguesa da cura. Só para os mais novos, habituados ao padrão actual da cura mais suave (de que também gosto) é que este bacalhau será surpresa.

Lembrei-me de que talvez alguns leitores da minha entrada anterior se tenham perguntado porque é que ele só tem esta época de inverno. É que a maior parte do bacalhau é hoje curado em estufa e este é ao sol, mas só o sol fraco do Outono e princípio do Inverno é que o cura sem o "queimar".

janeiro 17, 2007

Ai, o Porto de que eu tanto gosto!


O Público de hoje traz um anúncio publicitário surrealista. Nunca fui ao D. Tonho, no Porto, mas tive curiosidade e a informação que recolhi sugere-me que é um restaurante respeitável, embora as criticas fiquem longe daquele grau de consenso que nos tranquiliza.

Agora o que eu nunca tinha visto era um restaurante intitular-se, sem qualquer fundamentação, de ser "o melhor restaurante do pais e dos melhores da Europa". Presunção e água benta... Ou é só parolice provinciana? Com esta, sei eu de quem nunca porá os pés no D. Tonho e que até esteja em dúvidas pelo favor de publicidade ao publicar este escrito.

janeiro 16, 2007

Açordas açorianas

Os Açores fazem boa companhia ao Alentejo em alguma terminologia da cozinha de pão. Lá não há migas, mas há açordas e muitas. Açorda não é a de mariscos, aquela papa semilíquida, açorda é sopa, a começar por aquilo que, fora da região mãe, se chama sopa à alentejana e que, com um ovo, me dá um jantar (cuidados dietéticos sessentões).

Um dia destes falarei da larguíssima oferta açoriana de açordas, talvez mais rica do que a própria alentejana. Hoje fico pela minha delícia de infância, coisa ainda hoje bem frequente na minha casa. Os ingredientes são os habituais. Pão é pão, tanto nos Açores como no Alentejo. Azeite é que nunca foi produto açoriano, tem de ser substituído por coisa tipicamente local. Idem para os coentros, embora lá se usem muito esporadicamente (era uso do meu avô nas suas favas). Alho é alho, em toda a parte. Com isto, aqui vai a açorda mais típica da minha terra, a de hortelã. Nada mais simples, para quem está habituado a fazer uma açorda alentejana.
Numa terrina, um grande naco de manteiga, bastante alho pisado em sal grosso, um bom ramo de hortelã e pão em pedaços grossos. Escalfar os ovos em água com um pequeno golo de vinagre e usar a água para abafar a mistura, tapada, durante 2 minutos. Servir com um ovo escalfado.
Fica o registo de algumas outras açordas tipicamente micaelenses que conheço (umas tradição de família, outras recolhidas por mim, outras por Agusto Gomes): de cebola e açaflor, de batata doce, de inhame, de feijão, de lapas, de nêspera, de pero, de vinagre e vinho de cheiro, de rama de cebola, de funcho. Haverá tal variedade até no Alentejo? E preciso o termo açorda, exactamente aplicável às que indiquei, para não se pensar que estou a exorbitar do conceito básico: uma sopa de pão, gordura e aromas, normalmente servida com ovo escaldado.

janeiro 14, 2007

Perdiz à tasca de Alcântara

A perdiz à convento de Alcântara continua a ser para mim um mistério. É a única receita tradicional portuguesa que se pode dizer de grande cozinha, recheio de foie gras, cama de trufas, redução de vinho do Porto. Escoffier registou-a, como levada para França por algum soldado napoleónico. Não acredito. Quem é que em Portugal, mesmo frade abadiano, conhecia foie gras e trufas, nos primórdios de 800?

Faço-a sempre que um amigo caçador me oferece umas perdizes daquelas a que é preciso retirar os grãos de chumbo. Mas quem não tem cão caça com gato. Lembrando-me disto, deu-me hoje para a brincadeira. Mas, a brincar, a brincar... O restaurante de 3ª, mas esmerado, "Tasca de Alcântara" (R. do Convento, 44, telefone 213456789) forneceu-me a sua receita.
Para 2 pessoas. Uma perdiz de aviário (!), de preferência espanhola, 1 pacote (250-300 g) de pasta de fígado de ganso, industrial mas de boa qualidade, 300 g de cogumelos de Paris, grandes, 2,5 dl de vinho do Porto tawny, corrente (nada de exagero de custo!), 50 g de manteiga, 2 fatias de pão sem côdea, limão, 3 folhas de gelatina, 1 dl de caldo de aves, sal, pimenta preta.
Limpar bem as perdizes e rechear com a pasta de fígado misturada com alguns cubos pequenos de cogumelos, crus. Deixar no frigorífico, até ao dia seguinte, no vinho do Porto, mexendo de vez em quando.

Lavar bem o resto dos cogumelos, cortá-los em fatias grossas e reservá-los, regados com sumo de limão.

Tapar o recheio com uma côdea de pão, para não sair. Em tacho tapado, estufar lentamente, a lume médio-baixo, com o vinho do Porto, temperando com um pouco de sal e um toque de pimenta preta, até o vinho estar bem reduzido e quase xaroposo.

Derreter bem a gelatina no caldo de aves, muito quente.

Untar uma assadeira pequena com manteiga e começar por colocar as rodelas de cogumelos, depois a perdiz coberta só com algumas lascas de manteiga, e regar com a redução de vinho de porto e com o caldo gelatinado. Cobrir bem com folha de alumínio.

Retirar no fim a côdea que tapava o recheio. Servir sobre uma fatia de pão frita em manteiga, rodeada pelos cogumelos, regados com o molho e acompanhada com puré de maçã ou de batata.

Nota – A aldrabice tamém tem a sua técnica.

janeiro 12, 2007

Bacalhau de cura amarela

Evito fazer propaganda, até porque, no fundo, chateia-me fazê-la sem lucro. No entanto, às vezes, não se pode evitar, em termos de difusão pelos amigos de boas novas gastronómicas. Acabei de receber a minha encomenda de uma grande dose de bacalhau de cura amarela, coisa aparentemente feia e de cheiro agressivo. Tem de se aproveitar, porque a época está a acabar. Até ao começo do próximo inverno, ninguém o encontra. Comprar onde? Inevitavelmente, no Gourmet do Corte Inglês. Não há cá quem aprenda com os espanhóis?

Se quiserem seguir o meu conselho, para este bacalhau, nada de natas ou espiritualices, apenas uma bela posta cozida, com a melhor técnica ("cozer" bacalhau tem que se lhe diga!). Já escrevi sobre isto mas, propositadamente, não vou indicar o "link", para vos obrigar a navegar um pouco neste blogue.

janeiro 11, 2007

Os mestres


Portugal começa a ter uma geração de bons cozinheiros. Isto é um pouco diferente de se ser gastrónomo. Gastrónomo é que avalia o cozinheiro. Mesmo nos blogues, vejo bons cozinheiros em quem noto alguma falta de cultura gastronómica, "IMHO". Nas últimas décadas, tivemos alguns grandes gastrónomos, divulgadores da boa cozinha. É sempre injusto tentar fazer uma lista, mas aqui vai: Berta Rosa-Limpo, Maria de Lourdes Modesto, Sttau Monteiro, Augusto Gomes (esquecido por limitar o seu excelente trabalho aos Açores), Alfredo Saramago, José Quitério (prejudicado pela sua actividade de crítico). Mas, mestre dos mestres, Olleboma, reconstrução às avessas do seu nome, António Maria de Oliveira Bello, fundador da Sociedade Portuguesa de Gastronomia, em 1933.

O seu livro, "Culinária Portuguesa", é um clássico imperdível. Não imagino um gastrónomo português que não o tenha. Tenho a primeira edição, de autor, sem data, presumo que dos anos 20-30. Quando aparece nos leilões, atinge preços intoleráveis. Eu é que não vendo o meu. Foi republicado em 1994 pela editora Assírio & Alvim, com preâmbulo de José Quitério. Não sei se ainda estará disponível.

AMOB, segundo o prólogo de Albino Forjaz de Sampaio, foi, profissionalmente, engenheiro e mineralogista. Também homem de trato fino, "daqueles amorosos da vida que, dia a dia, vão desaparecendo". Era homem para quem, na cozinha e no comer, "os mais sagrados elementos são os colaboradores primários: o sol, a água, o lume, o tempo, o mar, a floresta, a ave, o fruto, tudo invenções de Deus e o vinho que é invenção dos homens dignos de serem nomeados deuses."

Era bom que alguns cozinheiros modernaços reflectissem sobre isto, antes de nos proporem, ao estilo da decadência do império romano, estufado de patas de camelo com línguas de estorninho assadas em mel de abelha selvagem, com tártaro de coração de macaco sobre crocante de coulis de palha de seara alentejana, com ligeiro toque de merda de porco preto. A esta coisa do porco preto é que os mando.

Já é altura de passar ao sério. Uma coisa magnífica do livro de Olleboma é a sua lista de conselhos sobre qual a boa época do ano para se comprar cada peixe. É preciso saber muito! Chapeau, mestre!

janeiro 08, 2007

Ainda a canela

Há dias, escrevi sobre o uso festivo da canela na sopa de cavador, uma delicia da cozinha tradicional da Terceira. Hoje volto às sopas. Cá em casa, estão a cargo da Belmira, quase membro da família. A única regra a que sabe que tem de obedecer é nada de batata, e muita couve flor como base. O resto vem da sua imaginação, ao abrir o frigorífico.

Há dias, fez-nos uma bela sopa. Tanto quanto se lembra, levava muita cebola, nabo, alho francês, curgetes, um pouco de brócolos, uma caiota e bastante aipo, com rama. Não exijam lógica à mistura, aparentemente desconchavada, é a sua imaginação. O que sei é que as suas sopas ficam sempre óptimas. Como é seu hábito, sal e pimenta moída na hora do meu moinho de mistura de partes iguais de pimenta branca e preta (meu requinte, tenho três moinhos, de branca, de preta e de partes iguais). O de menor uso é o de pimenta preta. Em geral, uso-a em grão. O moinho quase que só me serve para os bifes.

No fim, a sopa já cozida e moída, entrei eu, com dois cravinhos e uma pitada de canela em pó. Experimentem.

Para a próxima, falarei de outro toque, o de erva doce. Adiante, o cominho.

janeiro 07, 2007

Bife à Jansen (II)

P. S. de hoje à minha entrada anterior:

Relendo as receitas de bifes de Olleboma ("Culinária Portuguesa"), dei por uma pequena nota de que se deduz que ele considera o bife à Jansen como um dos muitos bifes de vaca na frigideira de barro à lisboeta, de que ele dá a receita. Só destaca o pormenor distintivo da confecção das batatas. Com isto, vou alterar a "minha" receita e abandonar os cubos de bacon (sempre desconfiei disto) e passar a usar o típico ingrediente deste tipo geral de bifes: as tiras de presunto demolhado

Bife à café

Termino a série de entradas sobre bifes com o bife à café, o mais vulgar dos bifes lisboetas, mas também, por isso mesmo, o que maiores variações tem. Lembram-se da rivalidade entre o Nicola, o Império, o Monte Carlo, o Vavá, o José Ricardo (versão popular, ao Campo Pequeno, para estudante pelintra, meio bife a 12$50!)? E não havia cervejaria de bairro que não se esmerasse no seu bife. Aqui vai a receita base, tal como apresentada por Maria de Lourdes Modesto, na "Cozinha Tradicional Portuguesa".
Por pessoa. 1 bife alto cortado do pojadouro (200 g); 2 colheres de sopa de manteiga ou margarina; 3 colheres de sopa de leite; 1 colher de café de fécula de batata; sal; pimenta; 1 colher de café de mostarda; limão.
Aquece-se bem metade da porção da manteiga ou da margarina. Introduz-se o bife e deixa-se alourar rapidamente dos dois lados, sem o picar ao voltar. Reduz-se o calor e tempera-se o bife com sal grosso e pimenta moída na altura. Adiciona-se a restante manteiga ou margarina e o leite frio, onde se desfez a fécula, e deixa-se cozer mais ou menos, conforme o gosto. Durante este tempo agita-se a frigideira constantemente para que o molho não engrosse. Junta-se um fio de sumo de limão e a mostarda. Serve-se o bife num prato aquecido e acompanha com batatas fritas em palitos. Este bife, que se serve em cafés e cervejarias de Lisboa, nada mais é do que a versão popular do célebre bife à Marrare.
Olleboma ("Culinária Portuguesa") descreve também um bife na frigideira à lisboeta. Não tem o molho típico, engrossado e com mostarda, mas inclui o presunto, também vulgar nos bifes de café e refere a frigideira de barro, que MLM omite mas que era tão típica dos bifes de Lisboa (e de S. Miguel). Curiosamente, não indica a vazia ou o pojadouro como carnes para este bife.
Para 3 a 4 pessoas. Corta-se em 4 bocados iguais meio quilo de carne de vaca: lombo, alcatra ou assem redondo. Estas carnes melhor será se tiverem estado em frigorífico por 4 ou 5 dias. Batem-se fortemente os bocados de carne com o masso próprio.
Põe-se ao lume numa frigideira de barro uma colher, das de sopa, bem cheia de manteiga de vaca, e os bocados de carne, temperando-se com pimenta em pó e sal fino, se a manteiga não for muito salgada e 3 dentes de alhos cortados ao meio no sentido do comprimento. Tapa-se a frigideira com um prato virado ou outra frigideira igual. Logo que se comece a sentir ferver, destapa-se a frigideira, junta-se mais uma colher, das de sopa, de manteiga, viram-se os bifes juntando 6 tiras delgadas de presunto de Chaves depois de estar de molho 3 horas e tapa-se outra vez. Em se sentindo a ferver novamente, tira-se a frigideira do lume, e servem-se na própria frigideira, devendo estar passados por fora mas rosados por dentro. Há quem deite também na última fervura meia folha de louro ou uma colher, das de sopa, de vinho branco.
Com tudo isto, noblesse oblige, tenho de dizer como é o meu bife. Melhor, o meu bife à la minuta, porque é variação de dia vulgar da minha colecção de bifes. Não difere significativamente da receita dada por MLM, a não ser em pequenos pormenores da confecção. Incluo na fritura alho pisado e louro, que retiro no fim. Só preparo o molho depois de o bife estar frito no ponto certo, para não continuar a fritar para além disso. Retiro-o e só o junto no fim, para reaquecer, já fora do lume. Em vez da fécula, uso farinha torrada. Para o molho, substituo a gordura de fritar, geralmente margarina dietética, por manteiga fresca, sem soltar os sucos, que levanto depois com o molho. MLM não diz que pimenta se usa. Por mim, claro que só pimenta preta.

janeiro 04, 2007

A canela

Com a sua imaginação, que não me canso de gabar, o Avental descreve uma calda enriquecida que inclui um pau de canela. Canela na calda também se usa na doçaria açoriana! Mais curioso é o uso açoriano da canela com outros fins. No meu livro, dissertei sobre o uso abundante de especiarias nas cozinhas (digo bem, no plural) das ilhas açorianas. A minha tese é que, na volta do largo, com passagem obrigatória pela Terceira, os comandantes das armadas da Índia trocavam especiarias por frescos e que, assim, as especiarias entraram muito caracteristicamente na culinária açoriana, como em nenhuma outra região portuguesa (pimenta preta, cravinho, noz moscada, pimenta da Jamaica, canela, a que se junta, por acréscimo de gosto, malagueta, erva doce, açaflor, cominho).

Canela, claro que em toda a doçaria. Mas também, com exagero para meu gosto, em muitos pratos de carne de S. Jorge. Na Terceira, é tempero indispensável (no fim, já sem ferver) de uma sopa típica popular, a de cavador, termo local para o trabalhador rural. É uma sopa rica (variando com as posses) de chispe (chanco, à terceirense), enchidos, feijão, batata, repolho e abóbora. A receita está no meu livro. Experimentem comê-la com e sem o tempero final de canela e depois digam.

E em S. Miguel? Nos livros em uso, não há uma única referência a canela. É natural, porque ela vem disfarçada, na cozinha tradicional, numa coisa que já poucos sabem fazer, "todos os temperos". Vendiam-se em mistura moída, nos armazéns de secos e molhados e eram indispensáveis para tempero da fava de taberna, da carne guisada, do feijão assado, ou dos torresmos de molho de fígado.

Aqui vai um desafio. Experimentem um ligeiríssimo toque final de canela em alguns pratos típicos, como vossa variante: feijoada, sopa de abóbora, rojões, molho de lombo de porco assado.

janeiro 02, 2007

Passagem do ano

Há sempre alguma ambiguidade na minha festa de passagem do ano, depois de reduzida a convívio exclusivo de casal entradote, a partir da altura em que os filhos passaram a querer ir para grandes festanças de amigos. Mas, com isto, tanto fomos desafiados a compensar, a minha mulher e eu, que hoje já é momento único, de exclusividade conjugal. Sem aceitarmos convites e também, egoisticamente, confesso, sem convidarmos ninguém. É a nossa ceia a dois e esmeramo-nos.

Este ano, baseou-se numa oferta de Natal que a minha mulher me deu, uma bela colecção de produtos Terras do Bosque. Foram-se os enchidos fumados de veado e de javali (melhores os suínos do que os cervídeos) e uma excelente perdiz de escabeche. Ainda ficam para futuras ocasiões a lebre com feijão e os frascos de "patés", lebre, perdiz, javali, veado.

A variar, duas coisa fora da marca. Um excelente camembert de leite cru (requisito absolutamente indispensável), no ponto certo, para meu gosto, quando já noto bem algum cheiro acholezado. Também um foie gras, mas não de lata, antes uma peça fresca trazida há tempos de Paris e congelada, o que não o afectou apreciavelmente. Mesmo que tivesse ficado diminuído, continuaria a ser muito melhor do que o foie gras semicozido ou em lata, que aqui compramos. Esteve umas horas a embebedar-se em vinho do Porto e depois foi ligeiramente frito em manteiga, às fatias, a lume baixo.

Fiquei pior em capítulo de vinhos. Temos por tradição não abrir champanhe, antes um alvarinho (história de velhas recordações que não são para contar). Normalmente, é a minha mulher que o compra, seu grande gosto. Este ano, para meu gosto, saiu-se um pouco mal com um Varanda do Conde 1999. Tem um travo que não é próprio de alvarinho e de que não gostei. Só depois percebi, é que é mistura de alvarinho e trajadura.

Finalmente, a imagem. Linda maleta em que vinham todos os produtos. Lembra-me coisa colonial inglesa, "Passagem para a Índia". Ainda a hei-de usar em viagem, ou até como pasta, quando me passar o receio de ser confundido com José "Chateau Blanc".