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dezembro 30, 2006

Os fritos de Natal

Aqui vai uma curiosidade gastronómica, evocada pela época. Certamente que os meus leitores continentais já devem estar enjoados de tanto sonho, tanta rabanada, tanta filhó. Nas minhas ilhas do paraíso, também enjoam, mas não agora, é no carnaval. Nunca consegui perceber a origem histórica de costumes tão diferentes, com a mesma base gastronómica. As receitas são quase idênticas, embora nos Açores ainda hoje se façam coisas tradicionais portuguesas já um pouco esquecidas cá, como os coscorões e as rosas do Egipto (com um ferro próprio).

Únicas, entre os fritos de carnaval, são as "malaçadas" de S. Miguel, uma delícia. Escrevi entre aspas porque ou são melaçadas, o que me faz mais sentido, quando se usava o melaço, sendo o açúcar produto precioso de exportação, ou mal-assadas, coisa estranha em relação a fritos. Aqui fica a receita. É muito simples de fazer, não tem truques, é das coisas da minha terra de que não me lembro de que alguém tenha segredos, ao contrário dos sonhos da minha avó (vou dar umas dicas ao Avental).
2 kg de farinha, 6 cs de açúcar, 12 ovos, 125 g de manteiga, 125 g de banha, 2,5 dl de leite, 2,5 dl de água, 40 g de fermento de padeiro diluído, 1 cálice de aguardente.
Bater tudo muito bem até a massa estar fina e deixar levedar, embrulhada num pano. Cortar ao tamanho de um bife e deixar o centro mais fino que os bordos. Fritar em óleo bem quente. Servir frias, polvilhadas com açúcar.

Bife à Jansen

Há coincidências curiosas. Há tempos, queixei-me aqui de ter perdido a receita do bife à Jansen. "Googlei" e nada. Ontem, não só encontrei a ficha já velinha como até descobri outra receita online e li uma nota critica sobre o bife.

Começo pela "minha" receita. A velha cervejaria Jansen, creio que ao virar da António Maria Cardoso para a Vítor Cordon, afamada entre o mais por ser lugar de refeição bifal frequente de Fernando Pessoa, provavelmente não deixou registo da receita. Outros bifes típicos de Lisboa, à café (este ainda actual), à Marrare, à cortador, de cebolada, estão bem documentados. Basta ler Olleboma ou Maria de Lurdes Modesto. A receita de bife à Jansen que apanhei, já não sei onde (e eu que anoto sempre tudo...), não faço ideia se é minimamente genuína.
De preferência em frigideira de barro, alourar em bastante banha alho pisado e picado grosso e bacon aos cubos pequenos (admito que, originalmente, fosse o nosso tradicional toucinho fumado) e selar rapidamente, de um lado e outro, um bife da vazia, um pouco batido. Temperar com sal e pimenta preta, juntar uma folha pequena de louro e deixar fritar. Ao mesmo tempo, fritar na mesma frigideira rodelas finas de batata pré-cozida com casca. No fim, escorrer ao máximo a banha, sem levar o fundo, substituir por manteiga fresca e levantar os sucos com um pouco de água.
O que me parece ser mais característico deste bife, para além da fritura em banha, é a necessidade de uma fritura mais lenta, a dar tempo para as batatas também alourarem bem. Não é bife a pedir-se mal passado.

Entretanto, como disse, apanhei na net outra receita, aparentemente publicada por um brasileiro. Tem uma diferença essencial. Esta receita alternativa indica que a manteiga se junta à banha. Banha mais bacon e mais manteiga? Estranho.

Finalmente, não podiam vir duas sem três, li numa crítica de José Quitério que um restaurante serve bife à Jansen com um molho de cerveja preta. Toda a gente sabe que o nome é hoje marca de uma cerveja preta sem álcool, coisa que certamente não existia nos velhos tempos de Pessoa. Não posso é garantir que não houvesse uma cerveja preta da Jansen, não consegui averiguar. Em todo o caso, não me consta que seja vulgar que os bifes de cervejaria tenham de incluir obrigatoriamente cerveja.

Esta da cerveja preta no molho faz-me lembrar a moda horrorosa de restaurantes incríveis de fazerem bife à café misturando no molho café moído. Aí há uns tempos, protestei, devolvendo aquela coisa intragável e vieram demonstrar-me que eu não tinha razão, porque a receita que eles seguiam fielmente era de um "chefe" (?!) muito mediático. O empregado tinha razão, lá estava o café na receita, com todas as letras.

Por este andar, ainda me servem um bife à Marrare com a ponta de um chifre de touro.

Nota – o tal restaurante tem duas versões desse bife, de lombo e de vazia. Aqui está um exemplo em que não uso lombo, que guardo para outras preparações. Além do mais, como disse, creio que este bife precisa de ser frito a temperatura média e durante algum tempo, o que não é compatível com a minha forma de fritar lombo, obrigatoriamente ¼ de passado ("medium-rare"). A usar outra carne, para além da vazia, seria pojadouro ou alcatra.

P. S., 7.1.2007. Relendo as receitas de bifes de Olleboma ("Culinária Portuguesa"), dei por uma pequena nota de que se deduz que ele considera o bife à Jansen como um dos muitos bifes de vaca na frigideira de barro à lisboeta. Só destaca o pormenor distintivo da confecção das batatas. Com isto, vou alterar a "minha" receita e abandonar os cubos de bacon (sempre desconfiei disto) e passar a usar o típico ingrediente deste tipo geral de bifes: as tiras de presunto demolhado.

dezembro 27, 2006

Sugestão para o vosso bacalhau de 24.12.2007

O bacalhau com natas entrou na moda numa cozinha de segunda ou terceira classe e já chegou às cantinas. É mesmo um prato obrigatório das “refeições de congresso”, a que tantas vezes me vi obrigado profissionalmente, servidas por empresas de “catering” pouco imaginativas, com a ementa sempre variada de bacalhau com natas e arroz de pato. Deviam fazer um esforço de imaginação. Mas vejo que há quem goste, sem saber que há muito melhor bacalhau com natas do que aquele que por aí servem.

Tão bom que, nos últimos anos, começou a ser tradição minha de Natal o célebre bacalhau à Conde da Guarda. Este ano, como viram, variei. Inclui no meu livro a receita de bacalhau à Conde da Guarda, de mestre João Ribeiro, do antigo Hotel Aviz (uma das razões pouco conhecidas da fixação de Calouste Gulbenkian em Portugal e, assim, uma origem pouco falada da Fundação), tal como recolhida por José Labaredas e José Quitério (“O livro de mestre João Ribeiro”, Assírio & Alvim, 1996, um livro a não perder).

Anexei o que é uma versão menor, mas boa, que circulava por algumas famílias da minha terra. Nunca consegui apurar a sua origem e também eu já a modifiquei muito, a maior nível, perdoe-se-me a vaidade. Aqui fica. Pode ser uma ideia para a vossa próxima consoada. Em dia de tanto trabalho culinário, é bem simples e bem boa na sua singeleza. Afinal, a condizer com a singeleza do presépio.
Para 12 pessoas, que é noite de família. 8 postas de bacalhau alto. 125 g de manteiga (mínimo dietético, mas não faz ml aumentar, como eu faço), 1 cabeça de alho, mantendo a pele rosada interior, 1 folha de louro, 50 g de presunto, 10 grãos de pimenta preta, 6 grãos de pimenta da Jamaica (na falta, 4 cravinhos). Puré: 1-1,2 kg de batata de cozer, 4 cs de manteiga, 2 gemas, leite q. b., pimenta preta e noz moscada a gosto. Nata: 4 dl de nata fresca, não para bater, 2 cs de sumo de limão galego.
Dois dias antes, demolhar o bacalhau, com a pele virada para cima, primeiro 3 horas em água corrente, depois em várias mudas de água. A cada muda, provar uma pequena lasca (a velha "punhetinha"!), para confirmar o momento certo da dessalga, sem que o bacalhau ficar insonso e a precisar depois de sal, na confecção. Isto é gozo meu, o de me gabar de, dessalgado correctamente o bacalhau, nunca precisar de corrigir depois o sal. Se necessário, guardar no frigorífico, bem escorrido. Ferver água de nascente, nunca uso outra para a cozinha, numa panela alta (sem sal, volto a dizer!) e introduzir as postas, com a pele para baixo. Deixar a água voltar a fervilhar, apagar o lume, tapar a panela e retirar o bacalhau ao fim de 4 minutos. Desfiá-lo bem, sem peles nem espinhas.

Derreter a manteiga, em banho-maria e deixar durante 1 hora, sem queimar, com o alho pisado, o louro, o presunto aos cubos pequenos, as pimentas. Retirar o louro e boa parte do alho e do presunto. Moer a manteiga ainda líquida com o resto do alho e presunto, sem as pimentas, deixar sedimentar, sem a manteiga solidificar e coar. Reservar o resíduo do alho e presunto moídos. Aquecer a manteiga num tacho, a lume brando e juntar o bacalhau, volteando durante 3 minutos. Temperar com um pouco, a gosto, do moído de alho e presunto. Escorrer da manteiga e reservar.

Fazer puré de batata, relativamente grosso, temperado com pimenta preta, noz moscada e incorporado com gema de ovo. Um pouco de batata doce, no puré, dá um toque açoriano, para apreciadores.

Acidificar ligeiramente a nata com 2 cs do sumo de limão galego. Isto é esquisitice de açoriano. É coisa magnífica que não se encontra cá. Imitem: 2 limas, ½ limão, ¼ de laranja. Misturem todos os sumos e usem a tal dose de 2 cs.

Untar com manteiga uma assadeira alta. Depositar uma camada de metade do puré, depois o bacalhau, depois o resto do puré. Com um estilete, fazer muitos furos a toda a altura e ir derramando repetidamente quase toda a nata, deixando embeber de cada vez. Alisar a superfície do puré, para ficar sem furos e regar com um resto de nata misturada com a manteiga aromatizada, derretida. Levar ao forno, a 170-190º, até ligeiramente gratinado, sem deixar fazer crosta queimada.

Servir apenas com uma salada muito simples, de alface frisada e ripada (eventualmente, misturada com um pouco de chicória), temperada com flor de sal – aqui está um caso excepcional em que vou pela moda – e um fio do melhor azeite extra-virgem. Se quiserem ser modernaços, um pouco de vinagre balsâmico, mas eu dispenso. Pode ser esquisitice minha, mas até uma simples gota de balsâmico sobressai-me demasiadamente.

dezembro 24, 2006

Receita tardia

Já deve ir muito fora de tempo, mas aqui vai o meu bacalhau de amanhã. Por tradição, dou sempre a estas minhas criações natalícias anuais um designação uniforme. Este é o bacalhau 2006.

(Para 12 pessoas, mas contando com 2 pratos, bacalhau e, cá em casa, a seguir, capão recheado frio, segredo de família)
O dito cujo. 8 postas altas de bacalhau da Islândia, a encher o olho!
Azeite aromatizado. 1 l de azeite de 0,2º - nem mais nem menos, que é para cozinhar!, 1 cabeça de alho, ½ pimentão vermelho, 100 g de presunto, 1 ramo pequeno de salsa, 12 grãos de pimenta preta, 4 grãos de pimenta da Jamaica, 1 c. sobremesa de malagueta.
Legumes abacalhoados. 1 kg de grão de bico, 500 g de feijão branco, 1 batata doce (cerca de 250 g), 200 g de abóbora, 1 c. café de "temperos" de S. Miguel.
E a hortaliça! 1 repolho, 6 cs de azeite, 2 fatias grossas de pão de milho, 2 dl de nata, 2 limões galegos (na falta, 1,5 limas e ¼ de laranja), um toque de noz moscada.
Colocar as postas de bacalhau num alguidar, com a pele para cima. Deixar em água corrente durante 1 hora. Demolhar durante 2-3 dias, com frequentes mudas de água (só provando em cru é que se sabe quando chega. Quanto melhor o bacalhau, posta alta, cura apurada, mais exige de dessalgadura). Ferver bastante água, juntar as postas com a pele para baixo (!) e deixar levantar fervura outra vez. Apagar imediatamente o lume, tapar a panela e deixar apenas 1 minuto! Depois verão porquê. Retirar logo, escorrendo. Arranjar em lascas muito grandes, como pequenos lombos, de cerca de 3 cm de altura.

Começar, de véspera, por preparar o azeite aromatizado e a guarnição, porque o bacalhau só pode ser confeccionado na hora. É muito simples, o fundo de puré de legumes, a coroa de repolho, o molho. Há aqui, no molho, uma variante importante, em termos práticos. Eu gostaria de servir este prato bem regado com o azeite aromatizado, mas depois os netos não me pagam a limpeza das nódoas nos sofás! A minha proposta é a de um simples gole de molho, proibido aos netos malucos. Se cearem sentados à mesa, usem uma boa dose do meu azeite aromatizado.

Azeite temperado. Aquecer em banho-maria, durante hora e meia, o azeite, o alho pisado grosso, com a pele rosada, o presunto aos cubos, o pimentão picado grosso, a salsa, os temperos. Coar, reservando o presunto, o alho e o pimentão. Com a batedeira, emulsionar bem este azeite com o alho e o presunto, com um pouco de tempero de malagueta. No texto que se segue, vou-lhe chamar azeite temperado.

Puré de legumes que o bacalhau namora. Demolhar os legumes e cozê-los, temperando com sal e pimenta. Escorrer bem e moer em "passe-vite", com malha fina, para reter os restos das peles. Se não se quiser dar a este trabalho, não há grande mal em fazer um puré de 1-2-3. Essencial é que, no fim, fique com boa consistência de puré e bem evocativo dos temperos de S. Miguel, pimenta preta, cravinho, canela, colorau, erva doce, açaflor.

A coroa repolhuda. Ripar o repolho, em troços de cerca de 5 mm de espessura e 2 cm de comprimento e escaldar em água a ferver. Passar para nova água com sal e cozer durante 12 minutos. Escorrer bem. Saltear no azeite o repolho e, ao fim de um minuto, o miolo de pão de milho esfarelado e a nata acidificada. Embrulhar tudo, durante 3 minutos.

O bacalhau. Lascar o bacalhau em pedaços grandes, cubos de cerca de 5 cm., sem peles nem espinhas. Colocar no fundo de uma assadeira e regar abundantemente com azeite, em boa mistura com o meu "azeite temperado". Cobrir com uma folha de alumínio e levar ao forno, pré-aquecido a 90º. Aqui é que está o segredo deste prato (ensaiei!). 1. Com termómetro de forno, 80º, 90 minutos. 2. Com forno eléctrico, aquecer a 110º durante 30 minutos, baixar para 90º, aguardar 10 minutos e introduzir o bacalhau, durante uma hora. Para quem só tem forno de gás, aquecê-lo ao máximo, meter a assadeira, apagar o gás, e nunca mais abrir o forno, durante uma hora.

O molho, coisa discreta, para os netos não abusarem e derramarem no sofá. Preparar, à parte, como se fosse vinagreta, 4 cs de azeite extra-virgem com 2 cs do azeite aromatizado moído com o presunto e o alho, 3 cs de vinagre de vinho tinto, malagueta, umas lascas pequenas de azeitona preta, salsa fresca picada.

Servir: no fundo, o puré dos legumes. Sobre ele, o bacalhau. À volta, o "esparregado" de repolho, polvilhado com o pimentão do azeite temperado, passado por água e cortado fino. À parte, o molho.

À maneira dos apreciadores de bacalhau, que é entre peixe e carne, um tinto leve, do Douro, ou um Dão.

dezembro 21, 2006

Os meus votos


(Gregório Lopes, "Presépio", MNAA)

O Gosto de Bem Comer entra em férias durante alguns dias.

dezembro 17, 2006

Vegetais açorianos (II)

Há uma semana, não sei como, esqueci-me de outro vegetal emblemático açoriano, o funcho. Não tem nada a ver com o bolbo de funcho (Anethum foeniculum) característico da cozinha francesa (acompanhamento de peixes, entradas) que já encontramos cá. Refiro-me é ao funcho selvagem ou bastardo (Anethum graveolis), de que não se come o bolbo mas sim a rama. Em algumas boas lojas continentais, arranjam-se as folhas terminais, com o nome de aneto eu endro. Têm um perfume de grande requinte e há que usá-lo com sabedoria. Nos Açores, não se usam só as folhas terminais, em fio. Os talos, tenros, também são muito saborosos e perfumados, creio mesmo que aromatizam a sopa mais do que as folhinhas em fio.

Nas minhas ilhas, o funcho é selvagem. Aqui, no Alentejo, já o apanhei à beira da estrada mas, talvez por exagero meu, não me sabe ao da minha meninice. A sua utilização emblemática, nos Açores, é na sopa de funcho. Aqui fica a receita, para quatro pessoas.
Um ramo de funcho, meio repolho pequeno (açoriano!), 300 g de feijão branco, 4 batatas, um chispe, 100 g de toucinho, meia linguiça de S. Miguel (na falta, bom chouriço alentejano), sal, pimenta preta, pimenta da Jamaica.

Cozer primeiro o feijão, demolhado de véspera, com o funcho picado grosso, o repolho picado, o chispe, o toucinho aos cubos e os temperos. A 10 minutos do fim, juntar a batata aos cubos pequenos e a linguiça às rodelas médias. Servir sem o chispe (na minha terra chama-se chanco) e o toucinho.
Isto faz-me passar para vegetal nada açoriano, a beldroega. Pouca gente a conhecia lá, o meu pai era dos poucos e ficou encantado por encontrar beldroegas em profusão numa quinta onde fomos passar férias. A minha avó materna não sabia como fazer a sopa de que o meu pai só tinha vaga ideia de criança mas, inventiva como era, resolveu fazer sopa de beldroegas como se fosse sopa de funcho. Ainda a hoje a faço muitas vezes e recomendo, bem diferente da tradição alentejana.

dezembro 12, 2006

Está na época

Gostam de bacalhau, como eu, que mais não seja uma boa posta cozida, como foi o meu almoço? Não se esqueçam é de uma coisa. Estamos agora na época do que é para mim o melhor bacalhau, o de cura amarela. Não percam.

dezembro 10, 2006

Vegetais açorianos

Caiota, inhame, batata doce. Chamo-lhes só vegetais porque a primeira é um fruto e os outros são tubérculos. Há vinte anos, ninguém cá os conhecia, hoje encontram-se com facilidade mas merecem ser melhor conhecidos e apreciados. É um exemplo de como, na alimentação, os Açores sempre tiveram maior contacto com as colónias do que a metrópole. Os casos que me parecem mais característicos são os da malagueta açoriana, originária da costa da Guiné, e o uso amplo de especiarias, com destaque para a pimenta preta e a pimenta da Jamaica. Mas também muita coisa então cá desconhecida e que faz parte do meu hábito alimentar de infância: a goiaba, o araçá, o tomate de capucho, o maracujá.

A caiota é o fruto de uma árvore relativamente pequena, Sequium edule, também designada Chayota edulis. Importa-se hoje em Portugal com o nome afrancesado de chuchu. É pena o nome, sempre foi caiota nos Açores, no Brasil, em África. Nos Açores, sempre se comeu como "legume", não como fruto. Normalmente, trabalha-se aos quartos, por ser a forma mais fácil de retirar um interior acaroçado, muito duro e incomestível. O resto é uma delícia de suavidade e de sabor requintado. Os seus usos são variados, dependendo dos hábitos de cada família. Simplesmente cozidas dão um acompanhamento esmerado para pratos de sabor suave. Na minha casa, usavam-se também salteadas e com molho de manteiga e limão, como entrada, outras vezes guisadas, com linguiça. Em puré, também ficam bem, embora, para meu gosto, um pouco deslavadas. E, já agora, porque afinal são fruta, há quem também faça compota de caiota.

O inhame é mais genuinamente popular. É também, do trio, o que menos me consola cá, onde se vende o chamado inhame de terra, creioque brasileiro, enquanto que o típico inhame açoriano (principalmente micaelense) é o inhame de ribeira, submerso, que resulta mis mole, menos seco e fibroso e com mais perfume e sabor. Na cozinha micaelense, o seu uso, como inhame cozido, é imenso, destacando-se o ser acompanhamento habitual de peixes fritos (ai, os "charrinhos") e de enchidos ou torresmos. Há uma variedade de inhames mais pequenos, muito suculentos, os minhotos.

Tanto quanto me lembro, a batata doce não tem muitas honras culinárias. Eu, por exemplo, uso-a muito em mistura com batata, para puré, mas não creio que isto fosse hábito nos Açores. Também a uso frita ou salteada, como base para entradas imaginativas, com qualquer coisa a cobrir as fatias de batata doce. Tenho ideia de jovem que o seu principal uso era em sopas de hortaliças e, indispensável, no cozido. Cozido sem batata doce, cá em casa, não é cozido. Experimentem. Outro uso vulgaríssimo era como sobremesa, assada, depois cortada a meio no sentido do comprimento e polvilhada com açúcar (e com canela, para quem gostava). Também uma excelente batatada, ao estilo da marmelada ou da goiabada.

dezembro 08, 2006

Peixe grelhado

Por dever de ofício, estabeleci há alguns anos uma boa relação com um restaurante vizinho, muito afamado pelo peixe, já que a maioria dos meus convidados estrangeiros só queria peixe. Esta relação de negócios valeu-me alguns requintes, que ainda se vão mantendo. Sempre que possível, o divino salmonete, mas não grelhado, antes assado na sertã, com pele a ficar estaladiça e facilmente soltável da carne. Depois, quando os prevenia com antecedência, os fígados guardados para um bom molho à setubalense, cebola estalada, muita manteiga, o fígado esmagado, um golo de vinho branco, sumo de limão e sumo de laranja, salsa picada, receita que ficou registada lá na cozinha como minha exigência. E olhem que não há chefe que não goste de ter estes clientes "esquisitos", varia-os da monotonia.

Ontem, já reformado e agora cliente banal, voltei lá com um amigo espanhol e fui atendido com a mesma simpatia, como se ainda fosse o grande cliente. O pior do almoço foi não ter conseguido resistir ao tormento do espectáculo da mesa ao lado. Belos linguadinhos, mas grelhados, com rega de azeite e vinagre. E quanto pagaram por aquela porcaria? O restaurante não tem culpa, não tem de ensinar aos clientes o que são as formas correctas de confeccionar cada peixe. Linguado, o peixe do mais suave sabor, IMHO, só em lombos ligeiramente estufados, com excelente vinho branco e muita subtileza de legumes e temperos. Grelhado, é borracha seca. Para aquela espessura, a diferença entre grelhado com realce de sabor e desidratação ressequida calculo que seja de 0,001 segundos!

E mais, que delícia uma dourada ou um robalo grelhados, de piscicultura! É a melhor forma de lhes salientar o sabor de cultivo artificial. Também os compro, porque são baratos, dão para puxar a carroça, mas só os confecciono de forma a disfarçar a origem. Uma das coisas boas de cozinha é haver muitas formas boas de disfarçar a má qualidade dos ingredientes, em contraponto a outra coisa essencial, a boa técnica de valorizar a qualidade.

Voltando ao salmonete, aconselho outros peixes vermelhos pequenos. Realce para o ruivo pequeno ("rouget"), mas também para um peixe que era tão vulgar, tão saboroso e que cada vez vejo menos: o peixe rei.

dezembro 06, 2006

A cerveja

Tenho com a cerveja uma relação quase religiosa. As festas do Senhor Santo Cristo eram e são as mais emblemáticas da minha ilha. Metiam muita devoção, mas também prazeres profanos. Muita coisas no arraial, os sorvetes de serrilha, os barrinhos de Vila Franca, o "cup" da quermesse queque das meninas vicentinas, mas, acima de tudo, o grande ritual de cumplicidade com o meu pai, acompanhá-lo à cervejaria à ilharga e beber o fundo da caneca. Que delícia, porque aquilo vinha temperado com sabor de pai. Vê lá se me mandas um fundo de caneca da cerveja celestial, se é que os velhos frades aí a fazem. Hoje, raramente bebo cerveja à refeição, é todo um outro ritual, principalmente de tertúlia de amigos.

Creio que não temos uma boa cultura cervejeira, embora tenhamos uma excelente tradição de cervejarias, combinando com mariscos e bifes. O que sempre conhecemos foram as cervejas banais, de baixa fermentação. Quem andou pela Bélgica e pela Alemanha sabe o que é apresentarem-nos menus de cervejas tão extensos como os nossos de vinhos. Ainda há pouco tempo, em Estocolmo, tive sempre de pedir ao barman do hotel para escolher por mim. Para meu gosto, destaco as cervejas encorpadas, de alta fermentação, as trapistes belgas, as ale inglesas, as weissbier alemãs. À parte, a inigualável Guiness, que desafia todas as classificações. Já temos de tudo isto bons exemplos nos supermercados de qualidade, é só questão de começarmos a apreciar.

No dia-a-dia, aceito as standard, Budweiss, Heineken, Tuborg, Carlsberg, claro que também a Superbock, mas não a Sagres em garrafa - questão discutível de gosto pessoal - mas é só para matar a sede estival, com amendoins. Beber com gosto, golo a golo, é outra coisa. É por isto que hoje, em Portugal, se vou cavaquear com amigos num bom bar de cervejas, só bebo duas, das nacionais, a Boémia e a Abadia. No bar da praia, sol alto, uma imperial, só para refrescar.

E conversa puxa conversa. Em qualquer cervejaria da minha terra, era muito rica a oferta de vai grátis com a cerveja: amendoins, tremoços, favas secas torradas, favas fritas, pevides de abóbora, com ou sem pele, ervilha seca torrada. Hoje, cá, só pedindo por favor. Excepção a assinalar para o Golden Gate do Funchal. Não há tremoços que se comparem.

dezembro 03, 2006

Novamente, os Biscoitos

Volto ao vinho dos Biscoitos. Depois do Donatário, mais um verdelho de mesa, o Da Resistência. Título apropriado, vindo de uma casa vinícola que resiste a todas as limitações, principalmente as de uma pequena produção (1000 garrafas do Da Resistência), para manter a maior qualidade e genuinidade dos seus vinhos.

Sobre isto, reza o contra-rótulo, em texto de Oliveira Figueiredo:
Da Resistência, não só por dar continuidade ao primeiro vinho produzido na Ilha Terceira, há mais de 400 anos atrás, com a mesma casta, mas também porque procura resistir ao assalto de uma urbanização desenfreada e desnecessária.
Com a garrafa, veio um texto de Luís Brum:
DA RESISTÊNCIA é um vinho que já granjeou alguma simpatia, uma palavra que explica tudo, atraindo as mais delicadas e finas sensibilidades em conexão com a degustação.

Pela diferença ao encontro da originalidade dos espíritos que se não devem combater, assim como a do gosto, pois esta é uma potência invisível e misteriosa à qual é difícil resistir.

Este vinho de mesa branco é no seu trato que adquire a delicadeza, a graça, o perfume encantador da natureza. A sua nobre missão atravessa os nossos mais apurados sentidos com a égide protectora do sossego manter a harmonia entre homens e mulheres a moderação nos prazeres, num humor fácil e independente.

As sensações das nossas línguas são mais filhas do prazer, as do Noroeste da Ilha Terceira, da necessidade: línguas de lava de onde vides da verdelho ainda resistem aos tributos que a vaidade e a moda impõem.
Passemos à minha prova, com a humildade de quem é simples apreciador de bons vinhos. Não consigo deixar de fazer a comparação com o Donatário. Como escrevi, o óptimo Donatário não é vinho meu preferido, como vinho de mesa. É excelente, mas, se o tivesse, guardava-o para ocasião só de vinho, com um bom S. Jorge ou Gruyère a acompanhar (beluga em dia de S. Nunca, trufas em dia de S. Quase-nunca, foie gras em dia de S. De-vez-em-quando), em contraponto, salientando o vinho.

Bom vinho de mesa é este Da Resistência, que venceu a prova de acompanhar o meu almoço de um peixe banal e desbanalizá-lo. O vigor de sabores do seu irmão está suavizado, não domina o prato. Não sou perito, mas parece-se ser feito com boa técnica, bica aberta, inox, baixa temperatura. Tem bom bouquet, coisa nem sempre vulgar nos brancos. O sabor típico do verdelho sobressai inconfundivelmente e é uma boa aposta da Casa Brum insistir num monocasta, com os riscos que isto comporta. É um vinho equilibrado, com sabor de volume suficiente, não demasiado, com suavidade e macieza, secura quanto baste e apenas a acidez nenessária ao realce do sabor típico a verdelho. De acordo com o que eu gosto, não me sabe a frutado de uva fresca, coisa que muitas vezes domina brancos na moda internacional. O toque contrastante de algum doce está lá, mas com grande subtileza. Tal como no Donatário, mas menos acentuadamente, quase imperceptível, há um toque de maresia. Há quem não goste, "nanja" eu que, indo aos Açores, vou sempre a uma zona de calhau encher o olfacto dessa maresia tão açoriana, com cheiro a cracas e lapas.

Fica-me a curiosidade: porquê dois irmãos tão diferentes? Não me parece que seja da técnica da vinificação. Apostaria mais na diferença da localização e maturação das uvas, mas é palpite de amador.

Visitantes dos Açores, hoje não há razão para lá beberem vinhos brancos continentais. Infelizmente, não posso dizer o mesmo dos tintos, mas cada região vinícola deve concentrar-se no melhor que tem. No entanto, a concorrência é sempre positiva. Em verdelho, Luís Brum não tem concorrência, porque os brancos do Pico e da Graciosa são multicasta, o que não quer dizer que não sejam bons vinhos. Dos Açores, diz o anúncio na moda, "ê tenhe filhes". E também bom vinho. Pena é que os Açores não possam ser "um imenso Portugal"!