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outubro 29, 2006

Nova receita

Aqui vai a sugestão de Codorniz assada em papelote, com repolho sobre "rösti" de batata doce e com cenouras glaciadas. Previno que vai como me saíu da imaginação e que não testei. Os meus leitores-cobaias que o façam.

Cozinha tradicional

Numa entrada anterior, escrevi "não é canónico, mas em cozinha estamos sempre a inventar, desde que não se desvirtue a cozinha tradicional". Isto dá para muita conversa. O que é a cozinha tradicional e regional, é uniforme em cada região? Nunca comi no Alentejo dois ensopados iguais, nem dois xerens iguais no Algarve, nem dois molhos de vilão iguais em S. Miguel. Evidentemente, há uma norma básica. Não aceitaria um bife regional da minha ilha com picles e ananás, sarrabulho com azeitonas ou uma posta mirandesa com pimentos morrones, para os turistas espanhóis. No entanto, há muita margem de variação e as boas cozinheiras sempre o fizeram. Falo expressamente no feminino, porque é às mulheres que devemos a herança da cozinha tradicional.

Vou dar um exemplo pessoal. Deliro com a fava de taberna da minha ilha. Quando me vim estabelecer no continente, procurei a receita, porque era coisa que não se fazia em casa dos meus pais, comprava-se na taberna, que não fornecia a receita (mas consegui um segredo comercial, o de "todolos tamperos"). Falei com várias velhotas, e as receitas variavam substancialmente. Apurei a minha, a aproximar-se ao máximo à da tal taberna. É a genuína? Sei lá. É muito boa, lembra-me bem a infância, acham-na genuína outros açorianos apreciadores, é o que me interessa.

Outro prato micaelense magnífico é o de torresmos de molho de fígado. Vão a S. Miguel e vejam como pode ser diferente, até entre supermercados, que o vendem. O da minha avó paterna fazia honras de família. Infelizmente, não deixou a receita e tive de a reconstituir, dando a provar à família. Qual é o segredo? Juntar bastante limão galego à vinha de alhos. Mas não é nada canónico, nunca vi isto em qualquer outra receita tradicional de molho de fígado, mas lá que faz a diferença faz (para além de outros segredos que não divulgo). E atenta contra o "tradicional", que hoje, à venda, é uma gordurice intragável?

Augusto Gomes tem uma obra meritória de divulgação das cozinhas regionais açorianas (livros editados pela Direcção Regional da Cultura, dos Açores). Vão ver os livros, S. Miguel, Terceira, S. Maria, e em cada um verão variantes significativas da mesma receita, de freguesia para freguesia ou de família para família.

A cozinha tradicional tem muito a ver com o património pessoal dos sabores de infância, na casa familiar. Julgo que é isto que define, para cada um, o que é tradicional. Tem o risco de, sendo-se pouco aberto à inovação ou à diversidade, se cristalizar numa visão muito pessoal do que é a tradição. Volto à minha família, agora à minha avó materna, exímia cozinheira, com grande gosto pela criação (as suas receitas originais são numerosas, principalmente de doçaria). Lembro-me de que, um dia, ouviu uma sugestão em relação à alcatra, ícone de família. Não hesitou em experimentar temperar com canela, coisa esquisita. Não gostou e deu a mão à palmatória, mas não sentiu que a experiência fosse pecado anti-tradição. E isto lembra-me que a alcatra é um bom exemplo. Há duas variantes igualmente tradicionais, a de vinho branco (ou até vinho dos Biscoitos), das casas ricas ou burguesas, e a popular, de vinho de cheiro. Quem não tem cão caça com gato.

Em conclusão. Isto é como a língua. Há normas que não podem ser violadas, mas há sempre neologismos enriquecedores, novos estilos. Que horror, se eu escrevesse hoje como o mestre António Vieira! Na cozinha tradicional, parece-me que é o mesmo. A questão principal é a de a inovação não ultrapassar os limites da genuinidade e da marca essencial caracterizadora do prato. Aí se vê o cozinheiro.

outubro 26, 2006

Endereços

Gostava de escrever a Maria de Lurdes Modesto e a José Quitério. Alguém me fornece os seus eventuais endereços de mail?

Também se come com os olhos


Escrevi há dias sobre a apresentação dos pratos. É coisa muito importante, porque toda a gente sabe que comemos subindo três degraus de sentidos: a vista, depois o olfacto, depois o paladar. Aqui vai, nesta fotografia, uma refeição, sopa e prato, que servi ontem a amigos (a sobremesas foram uns choux banais, mas com chocolate de maracujá, a lembrar-lhes S. Miguel). Fiquei satisfeito com a apresentação, embora não tenha a exuberância barroca que hoje vemos em alguns restaurantes. Não digo é o que é, muito menos dou as receitas, porque estou a tentar tirar proventos.

No entanto, isto foi excepção, por se tratar de dar a provar pratos para venda. Em casa, é diferente. Começo a ver amigos que, num jantar, andam entre a cozinha e a sala de jantar a servir pratos bonitos, individuais, à restaurante. Creio que isto quebra o ambiente e dá aspecto de que o hospedeiro é um chefe de mesa. Ficamos confrangidos, a pensar que o nosso convívio lhe está a dar tanto trabalho.

Quero dizer que há regras diferentes de apresentação entre o restaurante e a refeição de amigos. Nesta, ainda vou pela travessa comum, com toda a gente já bem sentada, em bom parlapié e bebericando o vinho. E que coisa bonita pode ser uma travessa bem apresentada!

O que é importante é manter-se a regra da distinção dos componentes e sabores. Ao centro, a peça principal. Aos lados, a guarnição, com o ponto certo de diversidade (para mim, 2-3 componentes, nunca 1, nunca 4, e mais a favor do 2 do que do 3), em contraponto de cores e sabores. Ao lado, indispensável, a molheira, que nunca sirvo um molho na travessa, cada um que tire o que quer e use para regar o que quer. Cada um emprata a seu gosto e até é boa conversa discutir os gostos. A discussão com boas regras é o principal alimento da amizade. E eu não distingo gastronomia de amizade.

outubro 25, 2006

O cozido à portuguesa

Se há prato que justifique a obediência a regras básicas de cozinha, é o cozido, sinfonia que tem de ser tratada com todas as regras da harmonia e orquestração. É um orgulho nacional, o único prato que tem honras de adjectivação à portuguesa. Bazófia nossa, é a mais antiga cozinha medieval, por toda a parte, com restos hoje, por exemplo, no "pot au feu" francês ou na "olla podrida" espanhola. O primeiro segredo toda a gente o conhece, a melhor qualidade de todos os ingredientes. Já o outro, igualmente importante, é mais descurado, a boa técnica.

Primeiro, que carne de vaca? A melhor sugestão ao amador é que escolha um bom talhante e lhe peça conselho. Se se quiser aventurar como conhecedor, compre chã de fora e ganso redondo, eventualmente pá e aba, mas não fica a mesma coisa. Se o cozido for para poucas pessoas, aconselharia só uma carne, o ganso redondo. Eu uso também cachaço, que enriquece o caldo, mas não o sirvo no cozido. E, se quiserem ir pelo cozido de Espírito Santo açoriano (a função), que tal fígado e sangue cozidos?

Coisa difícil, a escolha dos legumes e hortaliças. Obrigatórias as batatas e as cenouras, mas a escolha do resto depende da estação em que estão no máximo: nabo, couve, tronchuda, lombarda, abóbora, grelos. Indispensáveis para mim, açoriano, são a batata doce e o repolho ilhéu (não tem nada a ver com o de cá).

E os produtos da matança? Obrigatoriamente, uma mistura equilibrada de enchidos de carne e de sangue: chouriço, salpicão, linguiça, até mesmo presunto, sem courato; morcela, chouriço mouro de sangue. A farinheira também é de regra.

Pôr na panela tudo a trouxe-mouxe, é o que muita gente faz. Nas sete receitas de variantes regionais de cozido que Maria de Lurdes Modesto inclui no seu livro "Cozinha tradicional portuguesa" (indispensável!) todos os ingredientes são cozidos na mesma panela. É a tradição, não nego, mas, para mim, um cozido exige vários tachos, com cozeduras diferentes. Por um lado, todas as carnes e os enchidos duros; por outro, os enchidos moles (morcela, chouriço de sangue, farinheira) e o toucinho entremeado; por outro ainda os legumes farináceos, batata, cenoura, nabo, a que, só depois, se juntam as hortaliças. Assim, cada coisa fica com o seu sabor e não a saber tudo ao caldo único. A mistura de sabores faz-se é na boca. Quanto às carnes, tudo faseado. Primeiro o chispe, depois a vaca e o porco, a seguir o frango e os enchidos. Cada coisa tem o seu tempo próprio de cozer.

Regra seguinte. Qualquer coisa que se quer cozer só deve ser juntada à água quando ela já está ferver. A excepção que faço é a do caldo principal, em que junto logo o chispe com sal, cozendo-o até a água levantar fervura e adicionar as outras carnes. Outra regra, o tempero. Tradicionalmente, só sal e pimenta, embora no sul também se tempere com hortelã, bem como com malagueta, em S. Miguel. Mas experimentem usar só pimenta preta em vez da vulgar pimenta branca e juntar também 2 ou 3 cravinhos e 1 folha de louro. Não é canónico, mas em cozinha estamos sempre a inventar, desde que não se desvirtue a cozinha tradicional.

Finalmente, o arroz. Há regiões, principalmente no norte, em que se usa arroz de substância, levado ao forno. Gosto imenso deste arroz, para acompanhar assados rústicos, mas julgo que o assado destoa do cozido. O que uso é um arroz simplesmente cozido, mas numa mistura equilibrada dos vários caldos do cozido.

Finalmente do finalmente, há cozidos muito especiais, como o das Furnas, em S. Miguel. Já leram a minha receita de cozido das Furnas feito em casa? Abriu agora um novo restaurante açoriano em Lisboa (falarei dele depois de lá ir). Vejo que tem na ementa cozido das caldeiras das Furnas, coisa evidentemente impossível no continente, embora eu o faça. A tendência para a vaidade diz-me que terão lido o meu livro. Ou, mais provavelmente, "les bons esprits se rencontrent".

E ainda vou a outro finalmente, uma nota pessoal, porque, à açoriana, conversa puxa conversa (tenho um bom amigo terceirense que nunca me telefona por menos de meia hora, com a conta a encher). Uma coisa que gosto no cozido é o pós-cozido. Ao comer o cozido, vou deixando prpositadamente pequeninas raspas de tudo. No fim, com o prato só com uma boa garfada de arroz, lá vai essa mistura. É a sinfonia final.

E final dos finalmentes, que já começam a cansar, a sopa. Que delícia, sobre pão, bem temperada com hortelã e um pouco mais de especiarias (pimenta preta e da Jamaica), com alguma coisa retirada do cozido, batata, hortaliças, ums pequenas rodelas de enchidos, umas raspas de carnes.

Com tudo isto, pergunto-me, há um cozido á portuguesa? Não, há o cozido de cada um, desde que não lhe metam cogumelos e natas.

outubro 24, 2006

A alheira marrana

Hoje vai uma curiosidade histórica, certamente conhecida por muitos. Há já uns anos, em Israel, onde a cozinha tradicional é coisa complicada e indefinida de cozinha do Mediterrâneo oriental, surpreendi um bom cozinheiro com a notícia de que o mais genuíno cozinhado judeu se fazia em Portugal, a alheira.

Porque é que a alheira não leva porco? É prato marrano e símbolo da esperteza da sobrevivência. Os cristãos novos eram escrutinados em todos os seus costumes, para garantia de não judaizarem. Bom exemplo era comerem bem publicamente enchidos, ninguém suspeitaria que não fossem de porco, coisa execrável para as leis de Moisés. Esperteza judaica foi fazê-las com galinha e coelho. E herdámos uma coisa deliciosa, para comer, no ponto certo e difícil da fritura, com batata frita e ovo estrelado. Quando como alheira, e gosto muito, lembro-me de que também sou um pouco judeu, trisneto de um sefardita de Marrocos, José Bensabat, que foi negociar para os Açores no apogeu do ciclo da laranja.

outubro 23, 2006

Novas técnicas

Temos hoje muito bons chefes portugueses, com grande técnica culinária. Um que aprecio muito é Vítor Sobral, mas só vou falar dele por uma coisa que me dizem. É perito no controlo das temperaturas e no uso de novas técnicas de cozedura/assadura. É sobre isto que quero falar, destacando duas, a cozinha a vácuo e o forno a vapor.

Cozinha a vácuo, esqueçam, ninguém a pode fazer em casa. Já tentei imaginar, mas o custo de uma bomba de vácuo não compensa. Outro caso é o do forno a vapor. Num bom restaurante, é coisa especial e profissional, mas quase todos o temos em casa.

Na verdade, talvez não seja bem assim. Durante muitos anos, tive um banal fogão a gás com forno igualmente a gás. A temperatura é difícil de controlar e não se pode exigir muito. No entanto, muitos certamente terão, como eu agora, um bom forno eléctrico com controlo exacto da temperatura. Funciona razoavelmente como forno de vapor. Encho completamente de água o tabuleiro do fundo – às vezes com um pyrex extra cheio de água – e aqueço a temperatura alta, até ver que a porta do forno está bem embaciada (também, se o abro, os óculos não me enganam). O truque está aqui, abrir o forno o menos possível, para não perder vapor, só o tempo mínimo para lá metermos o que queremos assar ao vapor.

Depois, duas coisas essenciais. A temperatura deve ser inferior à da fervura. O meu forno só regula para 50º ou para 90º. Ponho a meio, um todo nada mais para o lado dos 90º. Depois o tempo. Obviamente, muito mais longo do que para um assado normal, diria que 2,5-3 vezes mais. É certo que isto se pode ir controlando, mas com o tal risco de perder o vapor de cada vez que se abre o forno.

outubro 22, 2006

Ainda os bifes

Podia ficar ela entrada anterior, mas um bife merece mais. Vou dar as receitas que considero genuínas dos nossos bifes emblemáticos. Acrescento, a pedido da Perenelle, a do bife regional de S. Miguel.

Bife à Marrare

Transcrição da receita recolhida por Olleboma (“Culinária Portuguesa”, edição do autor, sem data – anos trinta?):
“Para 1 pessoa: 1 fatia de carne de 150 g de pojadouro ou alcatra que tenha estado no frigorífico durante 5 a 6 dias, ou uma fatia de lombo que poderá estar o mesmo tempo no frigorífico mas que se for de rês nova não precisa de mais de 1 a 2 dias; 50 g de manteiga fresca; 0,5 g de sal; 1 decigrama de pimenta moída; meia dúzia de gotas de sumo de limão; algumas colheres de leite.

Esta preparação é bem simples de executar, estando o segredo do bom resultado que se pretende numa acção mecânica e no emprego dos melhores produtos.

Toma-se uma frigideira pequena de cabo onde caiba bem a fatia de carne que deve estar bem limpa de peles e gorduras e bem batida, põe-se ao lume a frigideira e quando bem quente deita-se nela 10 g de manteiga; em esta estando a ferver, junta-se o alho e a carne que se deixa corar, virando-se do outro lado por outro tanto tempo, tira-se a seguir a frigideira do lume e a carne que se põe na estufa. Deita-se na frigideira o sal e a pimenta, levando-se novamente ao lume, que deve estar bem forte, juntando-lhe o resto da manteiga, aos bocados e algumas colheres de leite mexendo-se a frigideira pelo cabo de trás para diante e de diante para trás sem parar. O molho vai-se ligando e engrossando. Estando em boa consistência, junta-se 5 a 6 gotas de limão, voltam os bifes para aquecer, deitando-se no prato de serviço, que deve estar bastante quente. Este bife é muito apreciado por ter bastante molho saboroso e sobretudo se a carne for tenra. Se a carne tiver pouco sangue pode juntar-se quando se deita a manteiga uma colher pequena de farinha de trigo crua ou levemente torrada no forno.
Esta excelente receita merece-me alguns comentários. Em primeiro lugar, esqueça-se o último período. Acho que, se a carne não for da melhor qualidade, não vale a pena fazer um bife à Marrare. Apesar de Olleboma indicar vários tipos de carne, só faço este bife com boa carne de lombo, até porque só o preparo de vez em quando, por razões de saúde e não quero desperdiçá-lo. Parece-me depreender-se da receita que a fritura do bife é sempre a lume muito forte. Não o faço, para não queimar a manteiga, o que sabemos hoje ser um veneno. Começo durante um minuto a lume forte, alourando bem a carne de um lado e outro, mas depois baixo o lume para médio-alto e não deixo queimar a manteiga. Mesmo assim, rejeito-a e junto manteiga fresca, embora com todo o cuidado para não irem os sucos com a primeira manteiga. Uso só pimenta preta, moída grosso e exagero um pouco no limão em relação à receita. Olleboma esqueceu-se de indicar a quantidade de alho; não uso mais do que meio dente esmagado e picado às lascas finas por pessoa. Finalmente, a minha principal modificação é que, em vez de leite, uso nata misturada com igual quantidade de leite.

Bife à Jansen

Está completamente esquecido, o célebre bife da cervejaria Jansen, no meu tempo situada no Calvário. Gosto muito dele mas tenho de o fazer em casa. Há muitos anos que não o fazia. Para escrever isto, lá fui à minha base de dados. Desilusão, não está lá. Pior, também não o encontro nas minhas caixas de fichas. Recorro ao Google e nada. Não posso ter perdido a receita, mas já sei que me vai custar muitas horas de rearrumação de fichas. Publico depois, mas fico desde já muito grato a quem me fornecer a receita genuína.

Bife à café

Toda a gente sabe, é hoje, em muitos restaurantes de terceira, um bife com molho de café moído, coisa horrorosa! Triste ignorância, não sabem que o nome vem de ser o bife típico dos velhos cafés de Lisboa, com expoente na minha geração para o Império e, ainda hoje, com pálidos reflexos no velho bife da Portugália. Devo admitir que não é grande coisa, este da Portugália, farinhento e com mostarda de má qualidade, mas tem para mim o sabor especial da evocação da memória juvenil, quando não era muito exigente e tinha de fazer contas à bolsa.

Frita-se em manteiga o bife, com alho às fatias finas. Depois de alourado de um lado e outro, tempera-se com sal e pimenta. Retira-se a manteiga de fritar e junta-se mais manteiga fresca e três colheres de sopa de leite em que se dilui uma colher de café de maizena ou fécula de batata. Deixa-se ligar mexendo sempre e acrescenta-se sumo de limão e uma colher de café de mostarda.

Bife regional de S. Miguel (a pedido da Perenelle)
4 bifes de lombo ou do acém, manteiga q. b., 4 dentes de alho, 1 cs de massa de malagueta, 1 folha de louro, vinho branco q. b., sal e pimenta preta.
Esmagar muito bem os alhos descascados com a massa de malagueta e barrar os bifes. Deixá-los a temperar 30-60 minutos. Derreter a manteiga a cobrir o fundo da frigideira e juntar a folha de louro. Fritar os bifes a lume não muito forte, virando-os e temperando com sal e pimenta. Quando fritos a gosto (mas de preferência meio passados), levantar com um pouco de vinho branco os sucos presos à frigideira, deixar apurar e servir com batatas fritas e, se se quiser, com um ovo estrelado. Tipicamente, este bife é preparado em frigideira de barro individual e nela é servido. E fica aqui a receita como homenagem ao meu pai, que fazia eximiamente este bife, embora não soubesse mais nada de cozinha.

Nota - já que falei da Perenelle, conto que, em sua honra, inventei um bife de evocação baiana, que parece ter agradado.

Técnicas básicas (II)

O bife

Por sugestão da Perenelle, continuo esta série com o "banal" bife. Quem não gosta dele? Pode parecer pergunta parva, mas leiam a propósito uma entrada sobre isto num blogue que nenhum gastrónomo lusófono deve perder, o Contraprova.

Comecemos então pela técnica. A coisa mais elementar é que a carne deve ser sempre cortada contra as fibras, nunca ao longo delas, como fazem alguns para dar maior dimensão a bifes da ponta do lombo, a agulha ou o lagarto, como se diz na minha terra. Segundo: contra o que muitos dizem, eu insisto em que, excepto com carnes de grande qualidade que não temos facilmente cá, todo o bife precisa de ser batido, conforme o tipo de carne. Um bife da vazia, do pojadouro ou do acém precisa de ser maltratado, com o martelo de bifes. A arte está no ponto certo e isto não se pode ensinar: amolecer mas sem quebrar a textura e empastelar a carne. Já martelar um bom bife de lombo é um crime. O que faço é dar-lhe umas ligeiras batidelas cruzadas, com o gume rombo de uma faca, sem o achatar. Outras vezes, se a carne me parece muito tenra, dou-lhe apenas uma grande palmada, de um lado e outro.

Depois, a gordura. O "gastronomicamente correcto" faz com que muita gente só use hoje o azeite. Para mim, em bifes, fica execrável. Para bife, a fritura é em manteiga. O problema é o bife ter de ser frito a temperatura relativamente alta, que resulta em produtos tóxicos da manteiga. Não há problema, os velhos cozinheiros sempre souberam que se rejeita por completo a gordura de fritar e que se usa manteiga fresca para o molho. Hoje, no dia-a-dia, para fritar, uso também com frequência margarina dietética, mas nunca manteiga dietética. Esta está preparada para barrar o pão mas nunca dever ser levada à temperatura de fritar.

O bife nunca deve ser temperado previamente com sal, o que faz com que, ao começar a fritar, largue logo o sangue. A gordura deve estar já bem quente, com o lume no máximo, e o bife é passado de ambos os lados, durante alguns segundos, até selar, isto é, ficar com a superfície seca e ligeiramente tostada. Só depois é que pode ser temperado, continuando-se a fritura com o lume um pouco mais baixo, mas ainda relativamente alto. Ainda quanto a temperos, nunca pimenta branca, sempre a preta, moída grosso.

Até que ponto? Depende do gosto de cada um. Horroriza-me um bife bem passado, mas há quem goste. O meu ponto certo só o consigo em casa ou num bom restaurante. Costumo chamar-lhe um quarto de passado. É quando o interior parece em sangue, bem vermelho, mas já não deita líquido. Já um dia um chefe me disse que é um desafio técnico, porque é preciso adivinhar. Ainda não há endoscopia para bifes.

Importante, a incorporação do fundo frito de sucos no molho, coisa essencial, seja ele qual for. O principiante faz isto raspando bem o fundo. A boa técnica é a da agitação forte da frigideira até diluir o suco seco mas sem largar o queimado.

Finalmente, com ou sem ovo estrelado, o "ovo a cavalo"? Depende do gosto e não emito opinião. Mas, obviamente, só para um bife banal, nunca, que horror, com um bife à Marrare.

outubro 20, 2006

Donatário, um grande vinho

Escrevo às sete da tarde. A esta hora, tenho normalmente a companhia de um bom vinho branco. Desta vez, é uma surpresa, o Donatário dos Biscoitos, da casa Brum, de que já falei, no desconhecimento do vinho. Vale nota. O meu caro amigo Luís Brum é exemplo da amizade açoriana e nunca me deixa desamparado. Hoje o carteiro não tocou duas vezes, só uma para me entregar a garrafa que abri e que estou provando. Começo por transcrever o retro-rótulo, que vale a pena.
"É a pedra solta do basalto biscoito, que forma o entravessamento das curraletas, padrão dos povoadores do norte da ilha, símbolo de trabalho e de persistência, abrigo das cepas e acumuladoras de calor. Nascido da lava, no litoral, entre os Altares e as Quatro Ribeiras, este vinho foi produzido a partir de castas antigas, tendo sido vinificado com controlo de temperatura de fermentação. Tem um agradável equilíbrio de fruta e frescura. Deve beber-se fresco (8-10ºC)"
Imperdoável, meu caro Luís, espero que corrijas, é a não indicação das castas. Aposto em verdelho e arinto, talvez terantês. Acertei? O rótulo também merecia mais.

Mas vamos ao vinho. Como é norma, primeiro o bouquet. Não sou muito exigente no caso dos brancos, mas este abusa. Aconselho a bebê-lo em copo de tinto, para se aperceberem do excelente aroma, raro num branco. Depois a prova. Não é um vinho fácil, mas cai especialmente nos que gostam dos vinhos com sabor a pedra, como eu aprendi a apreciar com os Dorin-Dézaley, quando vivi na Suíça. Neste caso, a pedra é o basalto das curraletas. Ao mesmo tempo, o frutado, mas como eu gosto, de frutas silvestres e com os sabores açorianos, amora e groselha, ainda claramente louro e um ligeiro toque de chocolate. E como é que me sabe a pimenta da Jamaica, tipicamente terceirense, ou estou a desvariar? Também me sabe a prado e a touro das corridas à corda. Que mais dizer? Aquilo que normalmente também não se exige muito a um branco, o fim de boca. Neste aspecto, o donatário parece um tinto.

No entanto, para concluir, este não é um vinho nada fácil. É amar ou odiar. O meu lado vai para o amor. Comparativamente, tendo falado do Frei Gigante do Pico, creio que o picoense cairá mais facilmente no gosto mediano, mas o Donatário é muito mais desafiador. Certamente que poderá ser melhorado, principalmente em relação a alguma rusticidade. É um vinho um pouco agreste, o que poderá ser corrigido na vinificação, não nas uvas. Ficará magnífico.

Recomendação final: atenção aos novos brancos açorianos! O problema é que a maioria dos meus leitores nunca os conhecerá senão lá, porque creio que a produção é demasiadamente limitada para exportação para o continente.

outubro 15, 2006

Técnicas básicas (I)

Este blogue tem uma leitora assídua mas longínqua, a Perenelle, que me escreve do Brasil. A sua última mensagem foi um desafio: "ensine o básico, 80 por cento das pessoas não sabem preparar um arroz". Escreve-me também outra coisa muito importante, só dita por quem sabe mesmo de cozinha, mas que fica para próximo comentário: "Culinária é uma arte, eu não aprecio a nova cozinha do Paul Bocuse. Na cozinha existem técnicas que devem ser respeitadas. Não gosto de invenções, qualquer dia vão inventar filé com mamão [nota JVC: não acredito que ainda não se tenha visto esta coisa numa ementa de "bom" restaurante!]. Depois de Carême e Escoffier não existe mais nada que se possa apreciar. São invenções sem técnica e estilo".

Não vou tão longe, acho que se estão a inventar boas novas técnicas, mas cada vez mais distantes do equipamento da cozinha doméstica, o que dificulta a cozinha do dia-a-dia. Ninguém hoje consegue cozer a vácuo, em casa, nem tem um forno a vapor. Mas vou pegar no desafio e começar a escrever algumas notas sobre técnicas muito básicas. Aproveitando a sugestão, começo pelo banal arroz, coisa muitas vezes tão maltratada.

Não há arroz que não precise de lavagem prévia. Quase todos temos em casa um recipiente perfurado para lavar e escorrer ingredientes. Aí deixo sempre o arroz, 10 minutos, em água corrente, Se não, numa tigela com bastante água e com mudas frequentes da água.

Depois, a escolha do arroz. Para um arroz cozido simples, tipo arroz branco ou à crioula, obviamente que um agulha ou um Basmati. Já para um arroz refogado e temperado de qualquer coisa é necessário um arroz mais rico em amido e mais absorvente, como o carolino português, o arborio e outros italianos, ou as muitas variedades valencianas.

Comecemos pelo vulgar arroz branco. A regra banal é pô-lo na panela e acrescentar a água. Eu complico um pouco. Primeiro, cozer em água uma cebola picada com um cravinho e um dente de alho esmagado, temperada com sal e pimenta. Fundir uma colher de sopa de manteiga e misturar muito bem o arroz, a ficar translúcido. Acrescentar a água coada, bem quente. Não juntar ao arroz água fria. E, a propósito de água, não use a da torneira, clorada, mas sim água de nascente. Olhe que um convidado de gosto apurado nota a diferença. Cozer em lume forte, com 1,5 vez de água, durante cerca de 11 minutos, controlando. No fim, é obrigatório passar bem por água. Vai arrefecer e tem duas soluções. A primeira é o nosso clássico arroz de manteiga: fundir 1-2 cs de manteiga e misturar bem com o arroz, no mínimo de lume, só até aquecer. A outra é à moderna, aquecer no micro-ondas. Mesmo assim, recomendo que se cubra com uma lasca de manteiga.

A outra variante de arroz simples é o arroz à crioula. Também exige técnica, principalmente o controlo do lume. Aqui vai a receita, mas aviso que tem de ser treinada. Lavar o arroz (basmati ou agulha) e juntar água com sal até 3 cm acima do arroz. Deixar cozer destapado em lume forte até a água estar ao nível do arroz. Tapar e cozer em lume muito baixo até secar (cerca de 45 minutos).

Passemos ao arroz de qualquer coisa, incluindo paellas e risotto. A diferença essencial, como disse, é a da utilização de arroz mais rico em amido e glúten, entre nós o carolino. Além disto, o arroz é sempre previamente refogado, pelo menos em cebola e alho, até ficar quase transparente. O refogado pode ser usado intacto ou aproveitando só a gorduras (para mim, normalmente, azeite). O passo seguinte é variável, ou se junta logo tomate ou outras coisas e se deixa refogar um pouco mais, ou os ingredientes só são acrescentados com a água ou caldo. Mais uma vez, nunca acrescentar o líquido frio. A quantidade também é critica: 1,5 vezes a quantidade de arroz para um arroz seco, 2-2,5 vezes para um arroz malandrinho. Há quem também o passe por água, a remover a "baba" do arroz e volte a aquecer. Como gosto assim, normalmente não o faço, mas aceito que fique melhor, em alta cozinha.

Um dia destes volto a falar sobre arrozes emblemáticos, os valencianos e os risotos. Têm muito que se lhe diga, mas isto hoje já vai longo.

Espero que o vosso banal arroz do próximo fim de semana seja um sucesso.

outubro 09, 2006

Blogues de gastronomia

Já tentaram fazer uma pesquisa sobre o que há de blogues portugueses sobre gastronomia? Quase nada. Não percebo. Se estou enganado, peço o favor de me irem assinalando colegas deste blogue.

Relacionada com isto é a minha estatística de visitantes: cerca de 300 por dia aos Apontamentos, 200 ao Bloco de notas. Este fica-se por modestos 60.

outubro 08, 2006

Amesendação e apresentação


São hoje duas coisas essenciais na definição de um bom restaurante. Sobre a primeira, pouco há a dizer, porque a barreira é bem clara: toalha e guardanapos de pano (linho, de preferência), pratos brancos ou com um ligeiro desenho (já viram os de Ana Salazar, que hoje uso com frequência?), copos de cristal ou bom vidro e com pé, talheres de boa qualidade, um muito pequeno ramo de flores, uma vela acesa ao jantar, que fica muito bem, limpeza da toalha antes da sobremesa. Já agora, relacionado com isto, a iluminação: nem arraial de feira nem também, como hoje vejo muitas vezes, uma soturnidade ("Lisboa, ao entardecer...") que não nos deixa ver as cores do prato. Também o mobiliário: já tenho estado em restaurantes caros com cadeiras não estofadas. A boca ressente-se da dor no rabo.

Das cores do prato passo à apresentação. É hoje critério da moda da grande restauração, mas não é novidade nenhuma, sempre os grandes cozinheiros souberam que se começa por se comer com os olhos. Devo confessar que, no dia-a-dia, não cuido disto, mas preocupa-me num bom jantar de amigos, embora não seja perito.

Como é sempre importante dizer que o rei vai nu, quero manifestar-me contra a moda actual do que chamo de apresentações verticais, tudo sobreposto, que obviamente desfazemos logo que começamos a comer. É o que ilustra a fotografia da esquerda. E garanto que já tenho visto muito pior. Vejam, como exemplo oposto, a fotografia da direita, que representa o que chamo de apresentação horizontal, realçando toda a composição do prato. Curiosamente, as receitas são bastante semelhantes, de salmonete. Qual é o que vos apetece mais comer?

Não tenho a técnica profissional das apresentações, mas sei o básico ou um pouco mais do que isso. Não vou escrever agora porque, seguindo uma sugestão de uma leitora fiel, brasileira, vou começar uma série de entradas sobre técnicas básicas. Lá entrará a da composição dos pratos, incluindo a apresentação.

outubro 04, 2006

Bacalhau de tomatada à açoriana

Recorro frequentemente aos segredos de família, muito díspares, desde cozinha aristocrática açoriana até coisas bem comezinhas. São estas as que me dizem mais, que me evocam as refeições familiares de infância no dia-a-dia. Hoje apeteceu-me fazer um dos bacalhaus da minha casa. Que delícia!

O bacalhau, nos Açores, é muito usado mas está longe da riqueza gastronómica do continente. Vou falar só pela minha família. Todos éramos grandes apreciadores do simples bacalhau cozido. Simples, salvo seja. Seja ele de grande qualidade, o bacalhau, e é assim que o prefiro. Outra maneira de o cozinhar, que agora fiz com grande apreço familiar, é o bacalhau de tomatada. Há quem o faça numa versão mais diluída, tipo caldeirada. Aqui fica a receita, para 4 pessoas.
4 postas de bacalhau, do lombo, 2 cebolas grandes, 4 dentes de alho, 2 tomates grandes, 8 batatas médias, 1 dl de azeite, 1 dl de vinho branco, 1 cs massa de malagueta, 1 c. sobremesa de massa de pimentão, 1 folha de louro, 4 hastes de salsa, sal, pimenta preta, 4 grãos de pimenta da Jamaica, ½ c. café de açaflor, sal.

Demolhar o bacalhau, primeiro em água corrente e depois em algumas mudas, com a pele para cima. Arranjá-lo em lascas grandes, sem pele nem espinhas. Alourar no azeite o alho picado, sem deixar queimar e juntar a cebola às meias rodelas e a folha de louro. Deixar estalar bem a cebola. Juntar o tomate picado grosso, a massa de malagueta, a massa de pimentão, a salsa e as pimentas. Baixar o lume e deixar estufar durante 20 minutos. Cobrir com as batatas cortadas às rodelas e com as lascas de bacalhau. Regar com o vinho e acrescentar água só a cobrir. Temperar com a açaflor e cozer durante cerca de 12 minutos, conforme a qualidade das batatas. Dar umas voltas com cuidado, para misturar tudo mas sem desfazer as batatas. No fim, temperar de sal, conforme a demolha do bacalhau.
Vai para a minha página de receitas, no meu sítio.

outubro 02, 2006

Aviso aos leitores

Já estão transferidas para aqui todas as entradas do meu anterior "O gosto de bem comer", no meu sítio, desde a primeira, em Agosto de 2005. A página do meu sítio vai ser desactivada.