" />

agosto 27, 2006

Férias em S. Miguel (IV)

O peixe de S. Miguel

Sou mais de carne do que de peixe, talvez pela minha exigência em relação ao peixe, que só consigo comer da melhor qualidade. Na minha ilha, procuro os sabores sublimes do seu peixe inigualável. Infelizmente, não posso dizer maravilhas destas férias.

Em primeiro lugar, nos restaurantes, a variedade de peixe era escassíssima. Vá lá, ainda consegui comer uns bons chicharros, bom cherne e uns aceitáveis filetes de abrótea. A moda é o boca negra grelhado. É um peixe muito saboroso, mas para fritar. Há que saber como cozinhar cada peixe. E onde param o pargo, a serra, a cavala, o cantaril, a garoupa, o bodião, tantos outros, peixes magníficos dos meus mares e ausentes das ementas dos restaurantes? Mas também uma surpresa: começou a pescar-se em S. Maria um excelente peixe espada preto, indistinguível do emblemático madeirense.

Também a confecção. Grelhados, como já enjoa. De vez em quando, fritos, com molho de vilão. É um dos molhos açorianos típicos, para peixe, juntamente com o molho verde (como se diz em S. Miguel) ou de salsa verde (como se diz nas ilhas do meio), e ainda do molho de ferrado, do Pico. Mas é preciso saber fazer o molho de vilão e nunca o comi decentemente nestas férias, apenas uma espécie de vinagreta com malagueta e alho crus. Ele é feito com o óleo de fritar o peixe, em que se aquece o alho pisado, a malagueta, uma folha de louro e uns grãos de pimenta da Jamaica ou dois cravinhos. Depois, um bom gole de vinagre e deixar apurar e cobrir o peixe. E já não falo de outros excelentes molhos tradicionais para peixe frito, o de laranja e o de limão. Cozinheiros de S. Miguel, as vossas velhotas não vos ensinaram, como a minha avó me ensinou?

Um ícone da cozinha açoriana é o peixe recheado, com base em pão, ovos, fígado do peixe, azeitonas e nozes (estas na cozinha rica, como na receita icónica da minha avó, que não é a quem aqui deixo, por segredo de família) coisa que desconheço no continente. Vem a receita no meu livro “O gosto de bem comer”. É prato magnifico de cozinha popular, de grande requinte e de cuidados sabores. Era esmero da minha saudosa cozinheira Ascensão para os picniques da sua excursão anual às Sete Cidades, que resultava em intermináveis conversas picarescas com a minha avó, neta de morgado que sabia conversar magnificamente com a gente do povo. No entanto, não há um único restaurante micaelense que o sirva.

Não quero deixar esquecido que me referi a dois peixes muito vulgares no continente, o chicharro (aqui carapau) e a abrótea. Tudo o que escrevi só diz respeito às variantes açorianas. As continentais nem se aproximam em qualidade. Se querem saber o que é um banal carapau (chicharro ou "charrinho"), vão aos Açores! A qualidade do peixe é a temperatura, a profundidade do mar, o plâncton. Experimentem.

E aqui fica a receita do peixe recheado. Maravilhem os vossos amigos.

PEIXE RECHEADO

Em S. Miguel, usa-se principalmente a garoupa, a bicuda (uma variante local, pequena, da barracuda), o pargo grande, a serra (um peixe que não conheço cá, do tipo da cavala mas maior) ou a cavala. Pode-se usar cá qualquer peixe grande bom para assar. Tem de ser comprado com o fígado, o que nem sempre é fácil, pelo menos para quem não vai à lota comprar o peixe inteiro, por arranjar. Na falta, pode-se usar fígado de tamboril, que é fácil de adquirir em qualquer peixaria. Mas não use o tamboril propriamente dito para este prato!

Peixe de assar, 2 dentes de alho, 1/2 copo de vinho branco, sal, pimenta branca e sumo de meio limão. Para o recheio, uma cabeça de peixe, uma cebola, vinagre ou sumo de limão, um pão grande, 4 ovos, um ramo de salsa, 1 cs de massa de malagueta, sal, pimenta e 100 g de azeitonas pretas.

Dar uns golpes ao peixe e esfregar com sal, alho picado, pimenta branca e sumo de limão. Preparar o recheio refogando ligeiramente a cebola picada miúdo e, ao começar a alourar, juntar o fígado do peixe e um gole de vinagre ou sumo de limão. Para um melhor recheio, pode-se juntar a carne desfiada da cabeça cozida de outro peixe. Juntar a este refogado uma mistura de miolo esfarelado de um pão grande, os ovos, a salsa picada, a massa de malagueta, sal e pimenta branca e as azeitonas pretas descaroçadas. Mexer muito bem e aquecer, mexendo sempre, até a mistura estar muito grossa e quase seca. Rechear o “bucho” do peixe e levar a assar ao forno, com o peixe coberto com manteiga e regado com o vinho branco.

Há quem faça usando pão de milho (broa) em vez do pão de trigo. Também se pode deixar previamente o peixe de vinha de alhos. Experimente e chegue ao seu gosto particular, tão respeitável como o dos meus patrícios.

agosto 24, 2006

Férias em S. Miguel (III)

Mariscos e vinho branco açorianos

Férias em S. Miguel não são propriamente baratas. Mas são experiência única e atitude necessária é não pensar na conta bancária. Isto vem a propósito de coisas indispensável, um grande jantar de mariscos. Há várias marisqueiras mas aconselho, por qualidade e preço, o Cruzeiro, na Atalhada, ao chegar à Lagoa vindo de Ponta Delgada.

Primeiro, umas cracas. Nem sabem o que são, uns moluscos metidos em conchas da pedra, coisa magnífica, polpa de sabor entre o delicado indescritível e o sabor de maresia. Só consegui a imagem de uma fonte brasileira, mas está muito longe da craca açoriana. A minha é de pedra negra, com cascas verde escuro, com muitos alvéolos e cheia de algas. Tradicionalmente, tiram-se da concha com um cravo de ferradura dobrado na ponta, pescando-os imediatamente por debaixo da concha que tapa o alvéolo. Atemoriza os continentais, mas ao fim de pouco tempo adquirem a técnica.

A seguir, uns cavacos, vivíssimos, apanhados no mar e mantidos em viveiro também de mar, até ao consumo. São a lagosta de pedra, sem antenas, substituídas por umas placas que não se comem. Pernas também não, pequenas e quase sem recheio, come-se só a carne. Tradicionalmente, são servidos com molho verde: uma vinagreta com muita cebola picada, alho, salsa, malagueta, cravinho e, obrigatoriamente, açafroa. Faltou a malagueta e a açafroa. Ai, cozinha da minha terra, que andas tão mal tratada! Vou ter de escrever mais sobre isto.

Para não multiplicar entradas, e porque uma refeição destas só com vinho, aqui vai uma nota. Com a filoxera, no século XIX, acabou o bom vinho açoriano, substituídas as cepas pela horrorosa uva de cheiro, americana. Restou apenas o vinho generoso verdelho, nos Biscoitos e no Pico, mas com produção muito escassa e mal conhecidos no continente. Nas últimas décadas, tem-se assistido a algumas experiências muito interessantes de dignificação do genuíno vinho açoriano. Começou, há muitos anos, com o Terras do Conde, da Graciosa, não muito conhecido, mas que resultou numa magnífica aguardente envelhecida. Se forem aos Açores, não a percam.

Depois, foi a Adega Cooperativa do Pico, com o seu branco Terras de Lava. Nunca percebi a charunfada da mistura de castas: arinto, generosa, seara nova, Rio Grande. Agora sim, um vinho muto bom, o Frei Gigante, das castas genuínas açorianas: arinto, terantês e verdelho. Não tem grande bouquet mas isto não se pede muito a um branco. À boca, secura sem aspereza, paladares subtis, elegância. Sabor a basalto e pasto, para falar em termos açorianos. Depois, um fim de boca a pedir mais um copo. Creio que os meus amigos, se não forem lá, não o provarão. Terra pequena, produção limitada, exportação impossível. Isto quanto a brancos. Não acredito que ainda vá beber um bom tinto açoriano.

agosto 22, 2006

Férias em S. Miguel (II)

O bife de S. Miguel

Era emblemático, com exemplo máximo no Alcides, de Ponta Delgada, hoje pálida amostra que não recomendo. Na cidade, ainda se vai comendo bem no Aliança, segundo me disseram. O segredo está na carne, lombo e lagarto, e na confecção. Bife de S. Miguel, diz-me muito, era o único esmero culinário do meu pai. Assim, começo com este tema esta série de notas sobre as minhas férias gastronómicas.

Comecemos pela carne. Toda a vaca micaelense é frísia, para leite. É abatida tardiamente, findo o ciclo do aleitamento. O que vale é o magnífico sabor do pasto natural. Mas é urgente juntar a isto a introdução de raças de carne. Vacas de leite já há a mais, ultrapassando a quota leiteira comunitária.

O tradicional bife micaelense é como se segue, e pode fazer-se cá (como fiz hoje ao almoço foi preciso regressar a casa para o comer no ponto):

Cortar um bom bife de lombo e batê-lo ligeiramente, com o lado rombo de uma faca. Pisar uma pasta de malagueta (se não conseguirem, vejam as alternativas que já propus, em nota anterior), muito alho e um pouco de sal grosso (habitualmente, a malagueta já tem sal suficiente; como toque pessoal, acrescento um cravinho ou um grão de pimenta da Jamaica, bem esmagados) e barrar bem o bife. Fritar numa frigideira de barro (essencial!), a meio ponto, com uma folha de louro. Genuinamente, é frito em manteiga. Eu uso margarina dietética, mas, por respeito com a tradição, acrescento uma colher de sopa de manteiga. Retirar o bife e apurar o molho com um pouco de vinho branco. Voltar a aquecer o bife e servir com batatas fritas e um ovo estrelado (clara bem frita, gema líquida). Nada mais do que isto!

Muito próximo disto, comi no Mandarina, no Pico da Pedra, ainda por cima de excelente carne. Único senão, a malagueta e o alho foram fritos com o bife, sem o temperarem previamente. Em todo o caso, vale bem a pena ir lá. Outras sugestões foram indescritíveis, como um bife à regional com ananás, arroz de cenoura e salada, um resto de óleo de fritura como molho. Era o bife regional, especial à moda da casa!

agosto 21, 2006

O que é um confitado?

Como as próximas notas de domingo vão ser sobre a minha experiência gastronómica nestas férias micaelenses, vou intercalando outras fora do calendário habitual. Há termos que hoje toda a gente encontra nas ementas dos restaurantes da moda: confitado, tártaro, crocante, espuma, etc. Palpita-me que muitos leitores não saberão o que significam estas modas. Hoje fico pelo confitado. Na origem, é uma técnica de conserva, de que é exemplo o célebre “confit de canard”. O pato ou qualquer outra carne é cozido, sem fritar, completamente coberto de gordura e conservado nessa gordura. Nada mais simples.

Mudando de bicho, recebi uma pergunta de uma correspondente brasileira: que tal truta em banho-maria? Não fiquei particularmente convencido da bondade da sugestão, em comparação com uma “truite au bleu”, mas lembrei-me da possibilidade alternativa de uma truta confitada. Como de costume, faço dos meus leitores cobaias. Experimentem e depois digam-me o resultado.

Truta confitada em azeite aromatizado

Para duas pessoas (não é praticável para mais do que uma refeição de casal): 2 trutas, azeite virgem quanto baste, 1 cebola grande, 1 cenoura, 4 dentes de alho, 1 folha de louro, 1 raminho de tomilho, 1 raminho de orégãos, 2 cravinhos, sal, pimenta branca.

Cortar em rodelas muito finas a cebola e a cenoura e pisar o alho. No fundo de uma caixa grande com tampa, colocar estes legumes e os temperos, depois as trutas esfregadas com o sal e a pimenta e cobrir completamente com azeite. Deixar no frigorífico a caixa tapada, durante uma semana.

Despejar tudo para um tacho grande em que caibam as trutas. Se necessário, juntar mais azeite, para que as trutas fiquem completamente cobertas. Aquecer a lume médio-baixo durante 15 minutos. Se o azeite começar a ferver, reduzir o lume ou afastar o tacho durante meio minuto e voltar a aquecer. Escorrer e limpar as trutas e servir.

Sugestão de guarnição, entre muitas possíveis: folhas de endívias, escaldadas, com o lado côncavo para cima, cobertas com uma espuma de nata azeda: aquecer meio pacote de natas e meio iogurte simples, em lume médio, durante cinco minutos, mexendo muito vigorosamente, como se a bater as natas. Pode-se também misturar bem com as natas e o iogurte uma gema de ovo. Temperar com sal, pimenta branca, um pouco de noz moscada e, fora do lume, com uma c. chá de boa mostarda. Segundo componente da guarnição, a contrastar: tomates cereja untados com azeite e ervas a gosto e ligeiramente assados.

Vai ficar também na minha nova página de receitas.

agosto 20, 2006

Férias em S. Miguel (I)

Duas semanas de magníficas férias na minha ilha vão alimentar estas notas gastronómicas durante algumas semanas. Mas hoje começo pelo hotel, à margem, mas não tanto, do gosto de bem comer, que começa pelo gosto de bem se estar. Fiquei no Bahia Palace (que ridículo, esse “h”), com acesso directo à bela praia de Água de Alto. A localização é privilegiada, a cinco minutos de Vila Franca, para o jantar, e com acesso rápido à nova rede de vias rápidas, a distribuírem-nos por toda a ilha.

É um hotel excepcional em relação ao panorama de Ponta Delgada, em que faz pena ver bons hotéis invadidos por uma onda de turismo escandinavo de má qualidade. Num deles, um dia, disse-me uma turista ao pequeno almoço: “eat, eat, it’s for all the day”. O Bahia Palace estava cheio de casais estrangeiros, mas dos que se vestem bem mesmo para ir tomar o pequeno almoço. O fato de banho é para depois, haja maneiras. Predomínio evidente de segundas luas de mel, como nós, um turismo magnífico. Mas não há moeda que não tenha duas faces.

O lado positivo:

- Bom arranjo paisagístico, uma piscina bem enquadrada, belos relvados a cair para o mar, com árvores a dar sombra a mesas e cadeiras para óptimas leituras.
- Panorama magnífico dos quartos a dar para o mar, com a gentileza de a ocupação desses quartos ser por ordem de reserva, sem tabela de preços especial, à madeirense.
- Decoração sóbria e elegante dos espaços gerais, com base em madeiras e bom mobiliário.
- Excelentes quartos. Zona de dormir e de estar com cerca de 30 m2!. Camas larguíssimas, sofá e duas poltronas, televisão de grande dimensão. No quarto, uma cómoda de três grandes gavetas e uma mesa de trabalho. Anexo para toilette, outro para guarda-fatos e arrumo de malas.
- Frigorífico com liberdade para os hóspedes lá porem o que quiserem, sem ficarem limitados aos preços do “minibar”. Banho separado da sanita, opção entre banheira e duche.
- Pessoal muito simpático, embora insuficiente em número e denotando algumas falhas de formação.
- Boas salas de jogos, para alguns jovens que por lá estavam. Mas falta de uma biblioteca, “cigar room”.
- Um bar com tudo o que se pode imaginar de bebidas, comreceitas originais de cocktails e com uma jovem “barwoman” muito competente.

O lado negativo:

- Limpeza do quarto a horas imprevisíveis e totalmente inconvenientes.
- Pequeno almoço em que, quando se acaba alguma coisa, é difícil virem substituir.
- Impossibilidade de nos fornecerem os dados para ligação à net do computador pessoal.
- “Pool bar” com ementa muito reduzida para o snack de almoço. Ao fim de alguns dias, já não sabemos o que encomendar de novo.
- Inadmissível, cadeiras do bar da picina e da esplanada de almoço com publicidade da Coca-cola e do Nestea! Também o café é servido em chávenas com propaganda!
- Não há contrato com os dois excelentes campos de golfe de S. Miguel. Ainda não sabem o que é o “golf tourism”?
- Falei antes na mesa de trabalho. Mas não tinha cadeira, tive de a pedir.
- Tabaco só numa máquina a desfear o bar muito bem decorado. Charutos e cigarrilhas, nada.
- Jornais, mesmo os locais, também nada.

Finalmente, informação importante: um casal, 12 dias, 1188 euros, 99 euros por dia. Nada mau.