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junho 25, 2006

Uma viagem para esquecer

Não tivesse sido o bom motivo que me levou a S. Miguel, esta semana, e teria sido, gastronomicamente, uma viagem para esquecer. Ida num dia e regresso no seguinte, ambos voos à hora do almoço, em executiva. Se fosse em turística, tinha direito era a uma sandes directamente saída do frigorífico. A ida foi na SATA, que tem um catering inaceitável, como já tenho verificado repetidamente. Ao menos, serviram um aperitivo, limitado à escolha entre sumo de laranja e um espumante detestável. "Cracks" não havia. Mesmo assim fica o registo, porque hoje, em executiva no médio curso, aperitivo só pedido expressamente e adivinhando o tempo que falta para a refeição. Anote-se que as tarifas para os Açores não são nada "low cost".

O almoço era peixe, já lá vou. A escolha de vinho era apenas entre um branco e um tinto, ambos de marcas que não sirvo aos amigos. O prato era uma posta de um peixe indefinível (imperador, pareceu-me) com gosto forte a mal congelado, regado com uma coisa insípida a que chamaram molho de natas. Acompanhamento só um, batatas cozidas aos cubos, mas aqui é que foi o desastre. Metade estava em papa, metade encruada.

No regresso, vim na TAP e pensei "ao menos hoje tenho a garantia de Vítor Sobral". Nem pensar. Medalhão de lombo com arroz de cogumelos. Lombo? carne dura e fibrosa, não identificável, ressequida e super-passada. Foi a repetição do meu jantar de véspera, como conto adiante. O arroz, formado em meia esfera, foi fácil de formar, porque era uma massa betuminosa.

junho 18, 2006

Três notas sobre ovos

1. Ovos mexidos. Pode parecer pretensioso escrever sobre coisa tão banal. Há alguém que não os saiba fazer? Há sim, os "cozinheiros" de pequeno almoço de muitos hotéis (a essa hora, os verdadeiros cozinheiros devem estar a dormir). Começo pela boa técnica, depois darei algumas indicações minhas. Hoje, os ovos guardam-se no frigorífico. Devem ser retirados um bom quarto de hora antes, para não sofrerem um choque brusco de temperatura. Nunca devem ser batidos, mas sim misturados suavemente. A frigideira deve ter o fundo espesso. Gordura (manteiga ou margarina) só a suficiente para untar o fundo. A altura do lume é critica, deve ser muito baixo. Havia cozinheiros clássicos que até faziam os ovos mexidos em banho-maria. Se começarem a formar-se crostas (mau sinal!), devem ser descoladas logo da frigideira e bem misturadas com a parte ainda líquida, para ir homogeneizando a mistura. E, melhor do que uma colher de pau, usar uma espátula larga, de madeira, hoje de plástico resistente ao calor.

Agora as minhas dicas. Contra a regra padrão, não me importo de manter uma ligeira separação entre a gema e a clara. Não vou é ao exagero de Calouste Gulbenkian, que exigia ao mestre João Ribeiro que misturasse os ovos com sete (nem mais, nem menos!) voltas de uma faca. Um dia, hei-de experimentar e conto-vos. Como pimenta, uso metade de branca e metade de preta e também gosto de um toque de noz moscada. Como é clássico, junto aos ovos, antes de os misturar, um golo de nata ou de leite.

2. Ovos com bacon. Não devia falar deste meu atentado à dietética, mas cá vai. O meu médico que não leia isto. É o meu almoço frequente no dia em que a minha mulher me "abandona" para ir trabalhar como voluntária hospitalar. Não uso o bacon fatiado, já embalado. É em fatias muito finas, que encarquilham e ficam logo ressequidas, antes de os ovos estarem prontos. Mando cortar fatias de 2 ou 3 mm de espessura. Uso uma frigideira de barro, individual e, no fim, escorro a gordura. Essa frigideira equilibra melhor a temperatura e evita o desastre quase inevitável de desmanchar os ovos na transferência de uma frigideira convencional para o prato. A propósito dessas frigideiras de barro: nada melhor para um bom bife.

Uso uma boa quantidade de gordura, já verão porquê. Normalmente, margarina dietética. Atenção a coisa muito importante: falo da margarina dietética, rica em poli-insaturados, que vem marcada como para uso culinário. A outra, para barrar o pão, nunca deve ser levada à fervura! Cubro o fundo com fatias de bacon e abro por cima dois ovos. Sal na gema, pimenta preta na clara. Lume baixo e paciência, colhendo constantemente com uma colher, por debaixo do bacon, a gordura do fundo e derramando-a sobre a clara dos ovos, nunca sobre a gema. No fim, fica tudo bem ligado, o bacon não demasiadamente frito, a clara não líquida, a gema sim.

3. Ovos estrelados especiais. Se a nota anterior era dieteticamente incorrecta, esta agora ultrapassa tudo. Quando vou a S. Miguel, tem de haver sempre na maleta espaço disponível para a linguiça e a morcela de regresso. Coisa excelente! Mas agora começa a porcaria... Cortadas ambas em rodelas grossas, a fritura – coisa de grande técnica, mas fica para nota posterior. Em quê? Forçosamente, banha. Depois o melhor acompanhamento, para além dos inhames ou, condescendo, batatas fritas: ovo estrelado. Porquê especial? Porque é frito na banha em que fritei a linguiça e a morcela. Como dizia a minha avó lambareira e sujeita a dieta muito rigorosa: "um dia não são dias". O mal é que ela dizia isto todos os dias.

Com isto, lembrei-me de uma coisa. Vou escrever alguns apontamentos sobre coisas "politicamente incorrectas" em cozinha, mas muito boas.

Nota à margem - Imaginam quantas receitas de ovos Escoffier incluíu no seu clássico "Le Guide Culinaire"? 263!

junho 10, 2006

Oferta de uma receita

Vou continuando a inventar receitas, mas agora tenho de lhes dar destino que não seja o livro. Depois de "O gosto de bem comer", tenho um projecto, mas limitado: "Cozinha de uma hora". As recitas que for aproveitando ou inventando com esse destino, não as divulgo. As outras, porque não?

A inspiração vem-me de coisas as mais diversas, por vezes até a simples leitura de um nome de prato, sem receita, ficando a pensar no que sou capaz de inventar para aquele nome. Aconteceu-me isto há dias, ao ler "bacalhau assado lentamente". Atraiu-me porque, como talvez se tenham apercebido, sou adepto das técnicas suaves a compensar e valorizar sabores marcados.

Exerimentei-a ontem, confeccionada por um meu irmão, cozinheiro de grande técnica e de gosto esperado. Ficou aprovado, mas talvez seja um desafio à sensibilidade gustativa dos leitores. Para alguns, sem ofensa, pode não valer a pena o trabalho, em relação a um vulgar bacalhau assado. Aqui vai a receita, em versão final depois dessa experiência.

BACALHAU ASSADO LENTAMENTE EM AZEITE AROMATIZADO

Para quatro pessoas: 4 postas de bacalhau, de preferência de cura amarela (disponível só no inverno), 2,5 dl de azeite extra-virgem, 4 dentes de alho, 1/4 pimentão verde, 50 g de presunto ou bacon, um ramo pequeno de salsa, 10 grãos de pimenta preta, 2 grãos de pimenta da Jamaica (opcional).

Demolhar o bacalhau, com a pele virada para cima, em várias mudas de água. Retirar a pele e a espinha central, formando pequenas postas, mas sem as lascar. Num tacho tapado, aquecer no azeite, em banho-maria e durante uma hora, os alhos pisados, o bacon ou o presunto em cubos pequenos e o pimentão também em cubos, o ramo de salsa e a pimenta. Arrefecer, coar e passar o azeite para uma assadeira, com as postas de bacalhau. Cobrir com uma folha de alumínio. Assar a 90-110º durante uma hora. O bacalhau deve ter aspecto de assado mas sem estar lascado nem ter perdido a sua untuosidade característica. Passar as postas para a travessa e regar com um pouco do azeite e um fio de vinagre balsâmico (sem misturar, para realçar o contraste das cores).

Acompanhar com um puré feito de partes iguais de feijão branco e de grão de bico, com metade dessa dose de feijão frade, e ligado com leite e um pouco do azeite de assar. Juntar outro acompanhamento a gosto e condizente (por exemplo, tomatinhos assados ou cebolinhas glaceadas) ou só azeitonas bem demolhadas e polvilhadas com oregãos.

Para além do puré misto, o meu irmão fez ontem, para dar o toque de acompanhamento tradicional de bacalhau, uma juliana de lombardo prensada, entre folhas inteiras. Lembrou-se também de que nem toda a gente tem um forno com temperatura regulável e experimentou outra técnica: aqueceu bem o forno, apagou-o e só então introduziu o bacalhau. Funcionou muito bem.

Claro que só divulgo isto para amigos e amadores, dando-lhes pleno direito de a divulgarem por sua vez, com referência ao autor. Para profissionais, restaurantes ou inclusão em livros, a história é outra. Reservo aqui explicitamente os meus direitos de autor.

junho 04, 2006

Peixe fumado

É coisa de que gosto muito, peixe fumado, fatiado em sandes ou inteiro, como refeição, com uma salada de batata com o meu molho de mostarda. Salmão, arenque, espadarte, truta. Mas as saudades de que tenho é do velho arenque fumado e quase seco, de carne castanha, e que na minha casa de criança se comia assado em álcool, como o chouriço, acompanhado por ovo estrelado. Admito que seja dieteticamente horroroso, mas que bom que era!

Ao lado dos fumados, também gosto muito dos peixes em "maatjes". São marinados crus, em vinagre e condimentos. Faço-os muito eu próprio, principalmente sardinhas abertas ao meio, ao longo do comprimento, e sem espinha. A receita vem no meu livro. Faz sempre grande sucesso nos meus almoços de buffet frio, no verão, no jardim. Um dia desses, faço sugestão de uma ementa destas.

Tenho uma enteada/filha na Suécia que já sabe o que é a prenda que me deve trazer sempre, um salmão fumado, em peça. Desta vez ofereceu-me uma novidade para mim, o "sik" (em sueco) fumado. Deu-me algum trabalho elucidar-me mas o Google, bem usado, é uma maravilha. O peixe, com cerca de 30 cm, é o Coregonus levaratus. Daí passei ao termo inglês, "loquat", que não conhecia, e depois ao português: arenque de água doce. Não creio que exista em Portugal, mas é muito vulgar nos rios e lagos suecos. Não desmerece em nada do arenque marinho, até é um pouco menos áspero e mais delicado de sabor.

Nota 1 – Ainda sobre fumados, mas deixando os peixes. Há bastantes anos, comprava muito costeletas de porco fumadas. Nunca mais encontrei. Deixaram de se fazer ou é minha falha na procura?

Nota 2 - Hoje deveria ter escrito sobre outro tema. É dia grande para os açorianos, o do Divino Senhor Espírito Santo, na linguagem respeitosa dos ilhéus. "Religiosamente", vou ter almoço de "função", à terceirense (sou açoriano híbrido) , agora responsabilidade familiar do meu irmão mais novo. Sopa de Espírito Santo, cozido (muito invulgar), alcatra, massa sovada, alfenim. Não escrevi sobre isto porque vem extensamente descrito no meu livro e a editora também tem direitos.