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abril 30, 2006

O arroz e o Encosta do Mosteiro

1. No Fugas do Público de ontem, David Lopes Ramos protesta - e muito bem - contra o uso de arroz agulha na confecção de arrozes portugueses num restaurante com pretensões. Escrevi sobre isto no meu livro "O gosto de bem comer".
Um arroz branco ou de manteiga é feito com o “nosso” arroz agulha, com um óptimo basmati indiano ou com o excelente surinam, difícil de encontrar; mas um arroz refogado com tomate, grelos ou outros componentes ou um arroz de peixe, carnes ou aves, ou ainda uma “paella” são melhores com arroz carolino, que “enche” mais de caldos e dos seus sabores. Para “risotto”, já se vende cá arroz italiano, mais especificamente piemontês (“arborio”, “vialone”, “razza”), encontrando-se mais vulgarmente à venda a variedade “arborio”, a que normalmente uso em casa.
Nas minhas visitas frequentes a Itália, nunca comi um risotto de basmani ou surinami! Os italianos não se deixam enganar pelas saloices espertas dos "bons" restaurantes. Parvos somos nós, ou melhor, a casta de novos-ricos sem educação e bom gosto, que paga a preço de genuíno o robalo de piscicultura, sem saber distinguir, e que acha que queijo só se come com presunto como aperitivo, com uma cerveja a começar (de cerveja sabem os alemães, mas, para aperitivo, vão ao "saft bar").

2. Indirectamente, continuo no arroz para destacar um restaurante modesto, o "Encosta do Mosteiro", num largo do Restelo atrás do Ministério da Defesa. Um grupo de amigos de almoço mensal vai variando de restaurante mas acaba sempre por lá cair. A minha predilecção vai para o seu excelente arroz de tomate a acompanhar pataniscas. Não sou especialista em pataniscas, creio até que nunca as fiz, mas acho que coisa tão simples deve ter segredos, como afinal têm sempre as coisas simples. O que é certo é que nunca comi pataniscas tão boas.

Não havia, no nosso último almoço. Apeteceu-me uma açorda de lagosta, mas inibi-me com o preço, 15 €, porque a conta é sempre a dividir. Um amigo também queria e o chefe disse que dava bem para dois, o que desfez os meus escrúpulos. Deu e sobrou. A açorda, muito bem feita, era a meias de lagosta e de gambas, mas tudo em grande abundância. Claro que a lagosta era de Cabo Verde, congelada, mas o que é que se pode pretender numa açorda, a esse preço?

abril 23, 2006

Gelado de courato

Grande inovação da geladaria Coromoto, em Portimão, por "empreendedorismo" de um emigrante na Venezuela: uma colecção de gelados que vai fazer sucesso. Gelados de atum, de sardinha, caril, arroz com coco, queijo com presunto, cogumelos, alho e cebola. Mas o meu preferido vai ser o gelado de courato!

É pena que não haja ainda outros: gelado de piripiri, de cação e coentros, de muamba, de frango de churrasco, de bacalhau, de morcela, de lampreia (seria o "must", também em preço). Estão a brincar com o pagode!

abril 16, 2006

Cozinha de festas

As nossas cozinhas, como muitas outras, incluem pratos típicos de festas, geralmente religiosas. Hoje, domingo de Páscoa, não podia deixar de falar nisto. Domina hoje o cabrito ou o borrego, símbolos pascais.

Nos Açores, é diferente, por ser muito raro comer-se qualquer desses animais criança. No entanto, os Açores têm grandes tradições de cozinhas festivas: a galinha recheada do Natal (hoje, infelizmente, cada mais substituída pelo peru, mas, na minha casa e muito melhor, pelo capão), a panóplia da função do Espírito Santo - escreverei sobre isso quando se chegar ao domingo do Divino -, os fritos de carnaval, os chicharros de molho de salsa verde, com a fava de molho de unha e as papas grossas dos piqueniques de 1º de Maio, na Terceira. Esta é certamente a ilha com maior tradição desta cozinha de festas ou de dias especiais.

Neste dia de Páscoa, na Terceira, era habitual um prato sem equivalente no continente: as empadas de peixe da Páscoa. Tão vulgares eram que até eram vendidas nas padarias e pastelarias. Hoje vai grátis a receita, tal como se fazia na minha família, sem vos remeter para o meu livro.
Uma garoupinha (dos Açores, que já cá se vendem!) e 2-3 postas de cherne, 250 g de nozes, uma cebola, 2 dentes de alho, um bom ramo de salsa, uma cs de banha, 3 cs de azeite, 2 cs de vinagre, 100 g de azeitonas pretas e pimenta branca. Para a massa, 0,5 kg de farinha, 125 g de manteiga, 125 g de banha, 2 ovos, 2 cs de açúcar e sal.

Amassar bem os ingredientes da massa e deixar descansar enquanto se prepara o recheio. Fritar ligeiramente os peixes, às postas e desfazê-lo às lascas. Ferver o molho, feito com as nozes muito bem pisadas, o azeite, a banha, a cebola e o alho picados, a salsa em ramo atado, que se retira no fim, e as azeitonas descaroçadas, temperando com pimenta branca, deixando-o reduzir. Juntar o peixe e, se necessário, um pouco de água e ferver mais uns 2 minutos. Fazer as empadas em formas próprias e rechear com o peixe e as azeitonas, com um pouco de molho. Tapar com massa, deixando um furo por onde se vai juntando uns goles de molho à medida que vão assando. Pincelar a tampa com gema batida e levar ao forno. Servem-se acompanhadas com o resto do molho e com uma salada simples.

abril 09, 2006

Peixe maltratado

Ontem ao jantar comi uma coisa de que gosto muito, um bom pargo bem fresco, assado à nossa velhíssima maneira: uns cortes, posto na assadeira rodeado de batatas aos cubos, tomate, cebola às rodelas finas, alho pisado, sal e pimenta, louro e salsa, tudo regado com bom azeite e meio copo de vinho branco. A minha mulher, que o fez, fica-se por aqui. Eu costumo acrescentar mais um toque de ervas, um pouco de malagueta açoriana e uns grãos de pimenta da Jamaica, embora nada disto seja canónico.

Como sou muito mais de carne do que de peixe, paradoxalmente ou não sou mais exigente com o peixe. Se comer um bife banal num restaurante qualquer, não me aquece nem me arrefece, fico à espera da próxima. Se comer um mau peixe, vem-me logo à cabeça que gosto menos de peixe do que de carne.

Isto fez-me lembrar os maus tratos a que está votado o nosso muito bom peixe. Não falo dos hábitos domésticos, mas na restauração. Há restaurantes de grande qualidade com excelentes pratos modernos de peixe, embora com algumas ideias estranhas, como a que aqui referi, de lombo de cherne com morcela. Mas esses restaurantes não estão ao alcance do hábito semanal da maioria das pessoas.

Nos outros, uma tristeza. Ainda vai aparecendo o peixe cozido (muito mal cozido, na nossa tradição! hei-de escrever sobre isto), mas o grelhado domina por completo. Além do mais, o PVP, que merecia atenção da DECO.

Quando fui director de um instituto, tinha muitos convidados ilustres, em regra estrangeiros, a quem tinha de oferecer almoço (já agora, era o único uso que dava ao cartão de crédito do director). Fiz um "contrato" de preços especiais com um restaurante próximo, muito na moda. Os meus convidados, sistematicamente, escolhiam peixe, mas a única oferta era de grelhados. Eu não me atrevia a dizer-lhes que as douradas e os robalos eram de piscicultura. Outros peixes eram inadequados à grelhadura: o linguado ou o peixe espada, por razões óbvias (pela sua espessura, só um génio grelhador o consegue fazer), mas também peixes secos como o cherne ou, inconcebível, espadarte e atum. Já agora, a lagosta, o lagostim e o camarão tigre, que só aceirto cozidos, questão de gosto pessoal. Para o meu preferido, o salmonete, tinha sempre de fazer encomenda especial, à setubalense, a que os meus convidados acabavam sempre por se render. Peixes fritos (ah, a garoupinha com molho de limão ou de laranja!), estufados, assados, cozidos a vapor, não os vejo nas ementas dos restaurantes comuns.

Esta nota termina com a receita de uma forma de cozinhar peixe típica das minhas ilhas, o peixe recheado. Usa-se para qualquer peixe grande dos que aqui ainda se vão usando para assar, como o pargo. Fica também excelente com uma boa garoupa açoriana, mas as que aqui chegam são mais para o pequeno. Lá, usa-se também muito a serra, da família da cavala, mas maior. Regra essencial: comprar o peixe com o fígado.
Peixe de assar, 2 dentes de alho, 1/2 copo de vinho branco, sal, pimenta branca e sumo de meio limão. Para o recheio, uma cabeça de peixe, uma cebola, vinagre ou sumo de limão, um pão grande, 4 ovos, um ramo de salsa, 1 cs de massa de malagueta, sal, pimenta e 100 g de azeitonas pretas.

Dar uns golpes ao peixe e esfregar com sal, alho picado, pimenta branca e sumo de limão. Preparar o recheio refogando ligeiramente a cebola picada miúdo e, ao começar a alourar, juntar o fígado do peixe e um gole de vinagre ou sumo de limão. Para um melhor recheio, pode-se juntar a carne desfiada da cabeça cozida de outro peixe. Juntar a este refogado uma mistura de miolo esfarelado de um pão grande, os ovos, a salsa picada, a massa de malagueta, sal e pimenta branca e as azeitonas pretas descaroçadas. Mexer muito bem e aquecer, mexendo sempre, até a mistura estar muito grossa e quase seca, com uma ligeira camada "queimada" no fundo do tacho. Rechear o “bucho” do peixe e levar a assar ao forno, com o peixe coberto com manteiga e regado com o vinho branco.
Há quem faça usando pão de milho (broa) em vez do pão de trigo. Também se pode deixar previamente o peixe de vinha de alhos. Experimente e chegue ao seu gosto particular, tão respeitável como o dos meus patrícios.

Apostila:

Há dias, fiz um jantar de família de irmãos num restaurante muito conhecido a que nunca tinha ido, o Pereira, na parte velha de Cascais. Recomendo, pela óptima cozinha. Fui provando de tudo. Um bom arroz de cabidela que encomendei (um tudo nada avinagrado em demasia, mas há quem goste), bons pezinhos de coentrada e, principalmente – encomendarei para mim da próxima vez – umas iscas inesquecíveis. Certamente marinadas anteriormente, suaves, fritas no ponto certo, molho engrossado quanto baste com raspa do fígado. Dão à escolha batata cozida, como é tradição, ou batata frita. Claro que o meu irmão, que sabe da poda, escolheu as cozidas, que melhor ligam com as iscas, mas a proprietária e "chefe de mesa" logo se lamentou de muitos clientes que vão é pelas batatas fritas. É nestas coisas pequenas que se vê o bom gosto gastronómico.

abril 02, 2006

Cozinha açoriana

Há dias, referi-me à cozinha açoriana como a minha preferida de entre as cozinhas regionais portuguesas, quase a par da alentejana. Começo por dizer que cometi uma imprecisão porque, em rigor não há uma cozinha açoriana. Ela tem variantes muito significativas de ilha para ilha, embora com uma matriz comum. Quanto a isto, há extremos: desde pratos muito típicos comuns a todas as ilhas, como o polvo guisado em vinho de cheiro ou os chicharrinhos ("charrinhos"), os carapaus do continente, em molho de salsa verde; até, no outro extremo, um prato bem conhecido, a alcatra, exclusivo da ilha Terceira.

Antes de me justificar, a resposta a uma observação de um dos meus irmãos, bom gastrónomo. Perguntou-me ele se eu não estava a ser influenciado pela cozinha de casa dos pais e se seria o mesmo em relação à verdadeira cozinha popular. É uma pergunta que faz sempre sentido, mas creio que ele não tem razão. Apesar de, obviamente, eu ter nos meus sabores uma cozinha burguesa, até com velhas tradições aristocráticas, também conheço boas recolhas de cozinha genuinamente popular e já comi lá em muitas e muito boas tascas. Aliás, ele lembra-se que muitas vezes, na nossa casa, comíamos excelentes coisas sempre compradas na tasca, como as favas de taberna ou o molho de fígado.

O povoamento dos Açores foi muito diversificado e daí a nossa cozinha reflectir o melhor do que por cá temos. A influência alentejana é forte (cozinha de pão e açordas, uso forte do alho, ervas e especiarias, pimentão, lá substituído pela malagueta, uso vulgar da vinha d'alhos, etc.). Mas temos muita coisa que, da tal variedade de origens, ultrapassam a cozinha alentejana. E, já agora, a influência na cozinha popular não vem só daí. Não esqueçamos o cuscus de S. Maria, levado por marinheiros magrebinos, frequentemente corsários, ou, mais recentemente, o feijão assado dos emigrantes, depois de conhecerem os "baked beans" americanos. Só este caso merecerá uma nota, um dia destes.

É uma cozinha cujo equilíbrio não se encontra cá (exceptuando as grandes zonas urbanas, que não têm uma verdadeira cozinha popular). Peixe e carne equivalem-se. Nas carnes, usa-se equilibradamente de tudo: vaca, porco, aves. Depois, usa ingredientes que não se encontram fora das ilhas (incluo aqui a Madeira), a começar pelas lapas e passando a várias espécies de peixes (bodião, bicuda, etc.) e mesmo vegetais, como a batata doce, o inhame, o funcho, ou o limão galego, indispensável para uma boa vinha d'alhos. Outros, são de qualidade e sabor bem diferente. Lembro como exemplos a abrótea, os carapaus, o atum fresco na sua variedade albacora. E principalmente, mas já fora da cozinha popular, a lagosta e o cavaco. Só lá!

Passo para a imaginação popular antiga das receitas. Da alcatra, coisa única, nem vale a pena falar. Mas também a caçoila jorgense, a molha do Pico e Faial, o peixe frito de ferrado do Pico, os torresmos de molho de fígado de S. Miguel, o peixe recheado, as lapas de molho Afonso a destilar geleia das algas, a sopa de cavador da Terceira, a fava de molho de unha, tanto mais, sem esquecer o já referido polvo, único no pais. Além disto, a permanência até hoje na cozinha vulgar açoriana de tradições já perdidas no continente: o molho de vilão, os escabeches, a fava rica (seca), a carne "assada" na panela (de facto, estufada) com as suas batatas rosadas no molho, são só exemplos que me vêm logo à ideia. E deixo um desafio, para prato idêntico: comam cá a vulgaríssima carne guisada aos cubos com batatas e depois vão lá comer o equivalente, ou na minha casa. Depois digo quais são os segredos.

Finalmente, duas coisas bem distintivas da cozinha açoriana. Primeiro, os enchidos. Não têm muita variedade, limitam-se à linguiça (mas grossa como o chouriço), à morcela e à chouriça moura, de sangue. Mas que diferença! Quem comer uma morcela micaelense nunca mais consegue comer outra. Podia juntar-lhes outros três pratos de matança, o sarapatel, dos tempos da expansão, que ainda hoje se faz, semelhante, em Goa; o debulho, coisa única; e o extraordinário pé de torresmo, a fazer as sandes das minhas delicias (que pena já não as fazerem no aeroporto de Ponta Delgada, onde eram sempre a minha entrada para o avião, com uma Melo Abreu – também hei-de falar da cerveja açoriana).

A segunda, a que se deve essa especificidade dos enchidos, é o uso rico das especiarias. Tendo a divagar, sem fundamento, dizendo-me que isto resultará talvez do comércio das naus da Índia quando, depois da volta pelo largo, faziam aguada e compravam frescos nos Açores. A lista de especiarias usadas nos Açores é muito mais vasta do que a continental. Sal, pimenta, louro e salsa, obviamente. Mas logo uma grande diferença na pimenta. Nos Açores, mesmo a mulher do povo que sabe cozinhar usa pimenta branca para o peixe e, religiosamente, pimenta preta em grão para a carne. Cominho, erva doce, cravinho, noz moscada, hortelã, são temperos obrigatórios, mesmo a canela. E, caso único, o largo uso secular da excelente pimenta da Jamaica, desconhecida de todas as outras cozinhas tradicionais portuguesas. Claro que não podia esquecer os dois casos emblemáticos, a malagueta e a açaflor. Merecem mais do que um simples nota. Fica para outro escrito.

Alguém entra com capital para um grande restaurante açoriano (apesar de o único que cá conheço não ser mau)? Eu, só com o saber.

P. S. – Tudo isto vem muito mais desenvolvido, e com as receitas, no meu livro "O gosto de bem comer". Comprem-no, que os direitos de autor fazem-me jeito.