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janeiro 04, 2006

O vinho dos Biscoitos

Certamente que muito poucos dos meus leitores alguma vez ouviram falar no vinho dos Biscoitos. Mas, antes do vinho, são as pessoas que merecem destaque. Falar em vinho dos Biscoitos é obrigatoriamente falar no Luís Brum e na sua família (nome exclusivamente açoriano, do povoamento flamengo). Chico Maria era o seu bisavô, se não me engano. Parece um tratamento plebeu, mas é um exemplo bem açoriano do tratamento familiar dos senhores rurais - também um meu bisavô era o João Diniz. Hoje, muito justamente, Chico Maria é marca de óptimo vinho. Mas, antes de falar no Luís Brum, não resisto a algumas evocações de infância. A sua avó e a sua tia avó eram as maiores amigas da minha avó materna, tudo famílias de entre Praia e Biscoitos, com encontros estivais no Porto Martins, uma espécie de Cascais terceirense na transição de séculos, XIX para XX. Segundo o hábito açoriano, eram para mim as "amigas Maias".

Uma tradição dos Biscoitos é a da sua tourada à corda, em que o touro não se limita a correr pelas ruas, vai mesmo para o mar. Eu assisti a elas, em miúdo, em casa dos Bruns. Aí brinquei com o Luís. E aí acabava a festa com a inesquecível alcatra feita com vinho dos Biscoitos. Infelizmente, hoje, limito-me a fazê-la com um grande vinho branco (digo "grande", porque é de obrigação).

Há algum tempo, recebi um telefonema do Luís, um longo telefonema, como os seguintes, porque isso de açoriano macambúzio é treta, falam que nunca mais acaba. Fiquei comovido com a lembrança da infância. Já nem sabia se havia de o tratar por tu ou, mais cerimoniosamente, como contacto recente. Claro que falámos de muitas memórias e de açorianices, mas principalmente dos Biscoitos.

Há uns anos, não o encontrei quando visitei nos Biscoitos (Terceira, Açores) a sua obra notável, a sua quinta-museu, imperdível. Não conheço melhor museu de vinho. Uma parte é ao ar livre, exemplo dos currais de basalto, com várias variantes de uva verdelho e demonstração das técnicas tradicionais de viticultura. Numa casa da quinta, os dois elementos do museu: os utensílios e a história da casa Brum, primeiro o tal Chico Maria (dobre-se a língua, Francisco Maria Brum), a seguir o seu filho Manuel Toledo Brum, depois Fernando Brum, felizmente ainda vivo, agora o Luís, fundador da confraria do vinho dos Biscoitos (já me candidatei a aprendiz e esta nota tem a ver com essa candidatura!).

Mas já divaguei demais, e vamos ao vinho. A casta verdelho é a casta nobre e histórica dos Açores, ao contrário da Madeira, que diversificou a sua produção vitivinícola: verdelho, sercial, bual, malvasia e, em muito menor quantidade, trerrantês e listrão de Porto Santo. Sobre a origem da verdelho, tenho lido coisas contraditórias, mas parece derivar de castas renanas. Dá um vinho meio-seco, muito aromático e elegante, com sabores herbácios (distingo bem o louro) e um pouco citrinos. Ainda há alguns restos de vinhas verdelho no Douro (Gouveio) e em Espanha (Godello). Hoje, a grande produção é australiana, mas não posso comentar porque nunca bebi.

A uva verdelho adaptou-se especialmente bem ao solo vulcânico dos Açores, dando vinhos de grande qualidade (eram muito importantes as exportações para a corte dos czares). Creio que rivalizava bem com o verdelho madeirense, dado que as outras castas madeirenses é que sobressaíam na imagem internacional do vinho da Madeira - ia agora falar desta imagem tradicional, mas tem de ficar para próxima nota, porque muito há a dizer.

Toda a história do vinho dos Açores se alterou com a invasão da filoxera, no fim do séc. XIX. Lamentavelmente, substituíram-se todos os vinhedos por uva americana, Isabel, que por lá ficou chamada uva de cheiro e aqui se conhece como morangueiro. Execrável! Entretanto, como os gauleses do Asterix, houve uns focos de resistência do verdelho.

A Graciosa tem uma produção muito limitada, que não dá para produção de vinho de casta. Há uns tempos, não sei se ainda hoje, produziam um bom branco de mistura, Terras do Conde, em que a mistura com Arinto, e não me lembro se outras castas, resultava num muito bom branco seco. Hoje também a adega cooperativa produz um verdelho-arinto, Pedras Brancas, que já me recomendaram mas que ainda não provei.

O Pico de aperitivo, até há uns vinte anos, era um excelente vinho mas quase que não comercializado no continente. Hoje vende-se como Lagido, mas não gosto: travo demasiado, muito tanino (maus cascos?), fim de boca desagradável. Também lá se fabricam vinhos de mesa, mas sem grande mérito.

Finalmente, os Biscoitos. É, tradicionalmente, um vinho com duas versões. A primeira é a de mesa, que se vendia há muitos anos, se não me engano, no depósito dos Bruns na R. dos Canos Verdes, hoje na R. de Jesus, em Angra, o tal que o meu pai levava para casa para a alcatra. Vinho de mesa mas a puxar, já não me lembro com que graduação. Depois, os generosos. Neste Natal, abri duas garrafas de "Chico Maria", oferta amiga do Luís Brum. O meio-seco, que servi como aperitivo, é muito bom, mas a minha maravilha foi o meio-doce que acompanhou as sobremesas. Magnífico.

Luís, para quando a venda no continente? Publicidade já estou a fazer!

PS - duas informaçõers de Luís Brum. O Biscoitos de mesa chega normalmente aos 14º e até pode ultrapassar. É para beber com cuidado! A Arinto da Graciosa é conhecida na Terceira como Terrantês, também existente na Madeira mas com produção de vinho muito limitada.

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