" />

janeiro 09, 2006

O vinho da Madeira

Escrevi há dias sobre o vinho dos Biscoitos e do Pico, enfim, o verdelho açoriano, também da Graciosa. Mas sou um ilhéu que não se fecha no bairrismo e que também se sente muito madeirense. Melhor, muito macaronésio, aí envolvendo também as Canárias e Cabo Verde. Não sendo especialista, queria escrever alguma coisa sobre o vinho da Madeira (aliás, os vinhos da Madeira).

Começo por dizer que, ao contrário do que vem sendo uso, sou um apaixonado por generosos. No fim de um bom jantar, prefiro largamente um Porto vintage a uma boa aguardente. Em relação ao Porto, é uma memória de infância. A melhor oferta que o meu pai podia fazer ao meu avô era um grande Porto. Quanto ao Madeira, a minha história pessoal é diferente e mais tardia. Na primeira metade do sec. XX, o cabo submarino foi muito importante e havia estações em Ponta Delgada e no Funchal. O avô da minha primeira mulher era funcionário açoriano do cabo, com grandes amigos e colegas no Funchal. Com isto, vim a encontrar em casa do meu ex-sogro uma bela garrafeira de Madeiras, que ele não apreciava e que eu desbastei, incluindo torna-viagens do sec. XIX.

Mais tarde, iniciei-me nas artes culinárias e aprendi o valor do Madeira. Para minha triste surpresa, quando fui viver para a Suíça, o Madeira, péssimo, estava na prateleira dos vinhos de cozinha, a preço de saldo incompatível com um mínimo de qualidade. Ninguém o comprava como vinho para beber. Era só para molho de Madeira, natas e cogumelos, ao estilo novo-rico.

Vamos ao sério. Escrevi que o grande vinho açoriano era o verdelho. O Madeira é mais variado em castas. Para efeitos práticos, separo os de aperitivo, relativamente secos, verdelho e sercial, dos de sobremesa, bual e malvasia. Apesar do meu gosto açoriano pelo verdelho, considero o sercial um vinho de aperitivo mais equilibrado e elegante. Quanto aos outros dois, nem há dúvidas na escolha. O malvasia doce é para gosto de donzela tísica. Um bom bual é outra coisa, a rivalizar com um bom Porto. Também há outras duas castas de muito menor produção, a terrantês (relacionada com a nossa arinto continental?) e a listrão.

Mas este vinho de casta é vê-lo, que a produção não dá. Hoje, na Madeira, o que mais se vende são vinhos de mistura, com castas não típicas, e fabricados para darem a classificação de seco, meio-seco, meio-doce e doce. São estes vinhos banais que, para desprestígio do genuíno vinho da Madeira, se dão a provar aos turistas nos habituais passeios. É verdade que lá têm a sua razão, porque a maioria dos visitantes não distingue a diferença. Por isto, uma história que já contei.

Há algum tempo, num dos melhores hotéis do Funchal, regressado de um bom jantar, apeteceu-me um bual velho, que encomendei no bar do hotel. Mandei-o para trás.
- O que é isto?
- Um bual, como o senhor pediu.
- Está a brincar comigo?
Pedi para ver a garrafa. Era um meio-doce, de uma charunfada de castas vulgares. O infeliz criado bem teimava que aquilo era o que toda a gente pedia e bebia como bual. O chefe do bar veio com a mesma história, que acabou numa conversa com o gerente do hotel, grande profissional (lamentavelmente, estrangeiro). Acabei bem. Não só ele me abriu uma excelente garrafa de bual como, ao voltar ao quarto, tinha a oferta de uma garrafa de 20 anos. Isto é que é profissionalismo.

Para terminar, a minha garrafeira tem uma preciosidade afectiva: um bual Henriques de 1944, a minha idade. Ainda nunca me considerei tão moribundo que me obrigasse a abri-la. Alguém me sugere um outro vinho de 1944? Há um que tenho de provar, quando calhar, um Buçaco branco (!) de 1944. Mas custa dez vezes mais do que o jantar respectivo e não me garantem que ainda tenha qualidade. Há anos que não abrem nenhuma garrafa.

0 Comentários:

Enviar um comentário

<< Home